quarta-feira, 20 de junho de 2012

Análise do episódio " A ilha dos amores"

cantos IX e X de Os Lusíadas. O mito da Ilha dos Amores é contado por Luís de Camões, nos Cantos IX e X d'Os Lusíadas. Nestes cantos, é relatada a vontade da deusa Vénus em premiar os heróis lusitanos, com um merecido descanso e com prazeres divinos, numa ilha paradisíaca, no meio do oceano, a Ilha dos Amores. Nessa ilha maravilhosa, os marinheiros portugueses podiam encontrar todas as delícias da Natureza e as sedutoras Nereidas, divindades das águas, irmãs de Tétis, com quem se podiam alegrar em jogos amorosos. Durante um banquete oferecido aos Portugueses, a ninfa Sirena canta as profecias sobre a gente lusa que incluem as suas glórias futuras no Oriente. Em seguida, Tétis, a principal das ninfas, conduz Vasco da Gama ao topo de um monte "alto e divino" e mostra-lhe, de acordo com a cosmografia geocêntrica de Ptolomeu, a "máquina do mundo", uma fábrica de cristal e ouro puro, à qual apenas os deuses tinham acesso, e que se tornou também num privilégio para os Portugueses. Tétis faz a descrição da máquina do mundo e prediz feitos valorosos, prémios e fama ao povo português. Depois do descanso merecido, os Portugueses partem da ilha e regressam a Lisboa. http://www.infopedia.pt/$a-ilha-dos-amores O mito da Ilha dos Amores, narrado por Camões, é fruto da sua imaginação, quer povoada dos lugares maravilhosos onde as suas viagens o levaram, quer influenciada pelas míticas ilhas da literatura grega ou de outras lendas árabes e indianas. A moral pagã opõe-se aqui à moral cristã, da mesma forma que os novos ventos da mudança do renascimento de inspiração grega se opõem às limitações e ao pensamento medíocre da Inquisição. Neste episódio simbólico da Ilha do Amores, Camões tenta imortalizar os heróis lusitanos que tão grandes façanhas fizeram em nome de Portugal. É no canto IX que se gera a controvérsia quanto ao carácter utópico do texto. A ilha surge como um local ideal, porto prazenteiro de marinheiros valentes que neste locus amoenus geram a descendência semi-divina da raça lusa, da qual uma ninfa profetiza os feitos futuros. É ainda do topo de uma montanha desta ilha que Tétis mostra a Gama a Grande Máquina do Mundo, ao estilo de Dante. Não havendo um projecto social, uma organização comunitária na Ilha dos Amores não podemos falar de utopia em sentido estrito, mas o significado simbólico e a complexa divisão de tempo e espaço no que se refere a este episódio são claras marcas utópicas. Em Os Lusíadas o autor exalta as realizações dos navegadores lusitanos e descreve os transtornos impostos a eles pelos mouros. Depois de muitas peripécias, seguem para o sul afrontando os perigos do mar, em direção ao Cabo da Boa Esperança, mas desejosos de voltar à pátria para relatar as ocorrências da viagem. Ao mesmo tempo, Vênus imagina um meio de recompensá-los por todas as dificuldades enfrentadas com um prêmio. Auxiliada por Cupido prepara-lhes uma ilha maravilhosa onde as mais belas ninfas esperarão por eles. Camões mostra o local como um verdadeiro paraíso: Nesta frescura tal desembarcaram Já das naus os segundos argonautas, Onde pela floresta se deixavam Andar as belas deusas, como incautas Algüas doces cítaras tocavam, Algüas harpas e sonoras flautas; Outras, cos arcos de ouro, se fingiam Seguir os animais que não seguiam. (...) Duma os cabelos de ouro o vento leva Correndo, e de outra as flaldas delicadas. Acende-se o desejo, que se cava Nas alvas carnes, súbito mostradas. Os marinheiros divisam por entre os ramos das árvores as cores dos tecidos das vestes das ninfas, as quais deliberadamente vão se deixando alcançar. Outras são surpreendidas no banho e correm nuas por entre o mato, enquanto alguns jovens entram vestidos na água. Elas não fogem e deixam-se cair aos pés de seus perseguidores. A leitura do poema indica o quanto Camões se inclina à forma plástica. A alegoria da Conquista se dá na Ilha dos Amores e nela toda a tensão configurada nas duas anteriores se desfaz em harmonia, uma vez que, cumprida a Provação e suprida a Carência, o épico e o dramático cedem lugar ao lírico. Na alegoria da Ilha novamente se ratifica a ideologia dominante, já que os prazeres recebidos de Tétis representam a fama pela conquista sobre o mar desconhecido. Estes prazeres vêm atender aos dois planos da Carência: o material, figurado no amor sensual e no banquete, e o espiritual que se retrata na demonstração da Grande Máquina do Mundo. Estes três conjuntos alegóricos se organizam e se complementam, pois o da Carência e o da Conquista se apresentam como discursos que disfarçam a ideologia de dominação, enquanto que o da Provação explicita, pelo seu processo de alegorização, o questionamento dessa mesma ideologia. a Ilha dos Amores é a síntese espaço-temporal e histórica da trajetória portuguesa. Sendo ilha, compreende os elementos espaciais terra, mar e céu, enquanto elevação. Levando-se em conta que ela é o resultado presente da história de um povo e, ainda, que nela acontece a profecia da ninfa, temos também na ilha a ocorrência dos três planos temporais: o presente, o passado e o futuro. Estes espaços e estes planos temporais se correspondem: a terra é o espaço de realização do passado português, o da consolidação do Reino; o mar é o lugar do presente em que se dá a ação expansionista; e na ilha se prediz o futuro de outras conquistas que consumarão a grandeza e a fama. E a ilha se configura como o espaço do interstício e da comunhão entre o mundo concreto e da horizontalidade em que se dá a ação heróica do homem e o universo abstrato e da verticalidade em que atuam os deuses. É o que se verifica logo na preparação da ilha, quando Vênus convoca seu filho Cupido: Parece-lhe razão que conta desse A seu filho, por cuja potestade Os deuses faz decer ao vil terreno E os humanos subir ao Céu sereno. Desta síntese do mítico com o real, do céu com a terra também participa a natureza cósmica que é configurada de modo paradisíaco: Pera julgar difícil cousa fora, No céu vendo e na terra as mesmas cores, Se dava às flores cor a bela Aurora, Ou se lha dão a ela as belas flores. A premiação do herói e do povo que ele representa é, pois, o alcance do paraíso, seja terrestre, seja transcendente. Esta premiação inclui a transposição do herói para os umbrais da fama cantada pela “Deusa Gigantéia”, 5 e, no canto X, estrofe 74, pela própria Tétis seguida pelo coro de suas ninfas. E ela inclui a dimensão humana da fruição dos prazeres mundanos do amor sensual, da beleza sensorial e do regalo do banquete, assim como também a dimensão intelectiva do conhecimento profético do futuro e da cosmovisão da máquina do mundo. a Ilha dos Amores simboliza porto e prêmio aos fatigados navegadores. Ainda mais, a glorificação pelos feitos heróicos, a imortalidade do nome, para sempre gravado na História. E o Amor representa a vitória sobre o desconcerto do mundo, afinal travara “u'a famosa expedição / contra o mundo rebelde”. A Ilha é, assim, o restabelecimento da Harmonia, de modo que a consagração e a transfiguração mítica dos heróis, que na ilha e pela ilha se opera, são, também e sobretudo, a recolocação do Amor, do verdadeiro Amor, como centro da Harmonia e do Mundo. A Ilha é uma catarse total, não apenas de todos os recalcamentos, mas das misérias da própria História, e das misérias da vida no tempo de Camões e fora dele. É a reconciliação, a transcendência. Portanto, a concretização amorosa é uma das maiores conquistas dos lusíadas em toda a empreitada marítima. É a celebração da vitória do povo que ousou desafiar os mares. No fundo, é um prêmio àqueles que bravamente navegaram para além “do que prometia a força humana.” Andavam pelas florestas “as belas deusas, como incautas”. Algumas tocavam cítaras, outras harpas e doces flautas e simulavam “cos arcos de ouro” “seguir os animais”, como em uma caçada. Já tendo os argonautas desembarcado, às ninfas [...]aconselhara a mestra experta: Que andassem pelos campos espalhadas; Que, vista dos barões a presa incerta, Se fizessem primeiro desejadas. Alguas, que na forma descoberta Do belo corpo estavam confiadas, Posta a artificiosa formosura, Nuas lavar se deixam na água pura. (Canto IX, 65) Estavam os navegantes desejosos de encontrar caça selvagem. Lançavam-se com determinação, empunhando espingardas e bestas, “pelos sombrios matos e florestas”. Não esperavam, porém, enxergar Por entre verdes ramos, várias cores, Cores de quem a vista julga e sente Que não eram das rosas ou das flores, Mas da lã fina e seda diferente, Que mais incita a força dos amores, De que se vestem as humanas rosas, Fazendo-se por arte mais fermosas. (Canto IX, 68, v.2-8) O encontro entre as nereidas e os navegantes estava selado. Em um jogo amoroso, “fugindo as ninfas vão por entre os ramos”, fogem manhosas, mais que ligeiras e, “pouco a pouco, sorrindo e gritos dando, / se deixam ir dos galgos alcançando”. Uma “os cabelos de ouro o vento leva”, outra “as fraldas delicadas” e “alvas carnes” mostra. Uma se deixa apanhar pelo seu perseguidor e outras, despidas, nas águas se “lançam / nuas por entre o mato, aos olhos dando / o que às mãos cobiçosas vão negando”. Um mancebo, desejoso de amor, “a matar na água o fogo que nele arde”, toma a sua presa. Estava consumada a perseguição e simulada fuga. Vencedores e vencidas, estavam todos entregues ao puro amor. O sentimento é tão intenso, o afago é tamanho, que os enamorados “se prometem eterna companhia, / em vida e morte, de honra e alegria”. Nos versos seguintes, inundados de lascívia, o relacionamento amoroso entre as ninfas e os portugueses não representa uma orgia desenfreada e desmedida: Oh, que famintos beijos na floresta, E que mimoso choro que soava! Que afagos tão suaves! Que ira honesta, Que em risinhos alegres se tornava! O que mais passam na manhã e na sesta, Que Vénus com prazeres inflamava, Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo; Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo. (Canto IX, 83) É, sim, a realização do amor, do desejo de amar e ser amado. É o momento de glória. Ainda mais, o momento em que o Amor, através do desejo, manifesta-se de forma que, mesmo que por um momento, o mundo recupera sua harmonia, estando livre de toda sorte de desconcerto. Evidentemente há uma entrega aos prazeres da carne, mas é um prazer fruto do Amor, que preenche a alma e purifica. O Amor que deifica homens e humaniza deuses, unindo-os em um só ser, fazendo com que entre eles não haja mais distinção, deixando criaturas humanas e divinas em um mesmo patamar, em uma mesma existência. O Paraíso é a Ilha dos Amores, episódio final que desvenda todo o significado do Poema. Vênus concedeu-a para que ali nascesse uma ‘progênie forte e bela’ e para que o ‘mundo vil e maligno’, caracterizado pela ‘triste hipocrisia’, que tenta separar os amantes por um muro intransponível como o diamante (‘muro adamantino’), soubesse que nada resiste à força do Amor. A Ilha é um pomar onde a natureza produz todos os frutos necessários à vida, ‘sem ter necessidade de cultura’. Em Os Lusíadas a revelação súbita da nudez desperta o instinto para o qual o pecado não existe. É em plena inocência, como se o tabu bíblico nunca tivesse existido, que se realiza e consuma o conúbio geral, sem restrições Depois desta recuperação da inocência e desta abolição da consciência do Bem e do Mal, os homens recuperam também a imortalidade. Como amantes das ninfas imortais, tornam-se eles próprios divinos. A mulher, intermediária à serpente maléfica, fizera Adão ser sujeito à morte. Na Ilha dos Amores é também a mulher (agora no plural) que liberta os homens da lei da morte. A concretização sexual entre os lusos e as nereidas, a concretização do amor e do desejo, ultrapassando quaisquer convenções da ars amatoria clássica é o único momento da epopéia em que há a plenitude amorosa. E aqui nos recordamos da trágica história de D. Inês de Castro, a bela de “colo de garça”, feita Rainha depois de morta, e do triste lamento do Gigante Adamastor, subjugado pelo poder avassalador do Amor. Em ambas as histórias, além do aspecto trágico, não há a realização plena do amor. Camões faz “voar o pensamento, libertando-o de quaisquer grilhetas conceptuais (neoplatónicas ou outras) graças ao poder das emoções e à força sempre misteriosa do desejo e do amor que o eleva e legitima”. É o amor concreto, realizado, mas que não apaga ou oblitera o desejo, e sim ultrapassa os modelos clássicos petrarquistas. Encerrada a celebração amorosa entre as ninfas e os heróis portugueses, Tethys [...]a quem se humilha Todo o coro das Ninfas e obedece , Que dizem ser de Celo e Vesta filha, O que no gesto belo se parece, Enchendo a terra e o mar de maravilha, O capitão ilustre, que o merece, Recebe ali com pompa honesta e régia, Mostrando-se senhora grande e egrégia. Que, despois de lhe ter dito quem era, Cum alto exórdio, de alta graça ornado, Dando-lhe a entender que ali viera Por alta influïção do imóbil fado, Pera lhe descobrir da unida esfera Da terra imensa e mar não navegado Os segredos, por alta profecia, O que esta sua nação só merecia, Tomando-o pela mão, o leva e guia Pera o cume dum monte alto e divino, No qual ua rica fábrica se erguia, De cristal toda e de ouro puro e fino. A maior parte aqui passam do dia, Em doces jogos e em prazer contino. Ela nos paços logra seus amores, As outras pelas sombras, entre as flores. (Canto IX, 85-87) A leitura do Canto IX deixa aberta e livre a possibilidade de fazer várias abordagens textuais, permitindo interrogar os vários sentidos propostos pela palavra. No contexto da viagem, ação central do poema épico Os Lusíadas se inscrevem os percursos reflexivos decorrentes da dimensão da viagem pessoal e interpessoal desejada. Os navegadores portugueses passaram ainda além da Taporbana / em perigos e guerras esforçados / mais do que prometia a força humana / e entre gente remota edificaram / novo reino que tanto sublimara (Canto I, estrofe 1). Os navegadores portugueses cumpriram a viagem de conhecimento e descoberta do caminho marítimo para a Índia, aproximando gentes, culturas e memórias. Os navegadores portugueses por obras valerosas / pelo trabalho imenso que se chama / caminho da virtude, alto e fragoso / foram compensados na Ilha dos Amores “doce, alegre e deleitosa (Canto IX, estrofe 90) a qual constitui a promessa de uma compensação absoluta do esforço e mérito humanos, por proposta de Vênus. A divinização dos heróis é a conclusão para que aponta a intriga mitológica: os portugueses, ao longo da aventura que constitui o núcleo narrativo, são favorecidos por Vênus e hostilizados por Baco. Os homens tornam-se deuses e descem do pedestal as antigas divindades. No Canto IX, o recebimento dos nautas pelas ninfas significa, entre outras coisas, a confirmação dos receios de Baco: de fato, os navegantes cometeram atos tão grandiosos que se tornam amados por deusas; e, de certo modo, divinizam-se eles também. Aqui temos um mito construído com elementos da cultura greco-latina, mas elaborado para o efeito específico que Camões visa. Este efeito desejado pelo poeta é o de imortalizar os heróis através de um acontecimento nuclear, a viagem de Vasco da Gama à Índia. Como já citado, os navegantes portugueses são recebidos e homenageados num ambiente paradisíaco, idealizado pelos deuses à mercê dos humanos, divinizados e imortalizados por via do Amor. Assim aparece um quadro idílico, formado por uma Natureza belíssima e cheia de atrativos: o doce murmúrio das águas, o cantar dos pássaros, os variados sabores dos frutos, o perfume das flores, a amenidade, a frescura e o recolhimento de um bosque, a verdura repousante de um porto seguro. E neste ambiente, sem metáfora, paradisíaco, o amor torna-se de repente possível, um amor total feito de sensualidade e galanteria, de desejo e de paixão pela beleza. Nada o ensombra: decepções, receios, insatisfação, pecado, remorsos foram, de repente, banidos no glorioso presente de um instante que se furta ao fluxo temporal. Mais ainda: para que os nautas sejam cumulados em todos os aspectos, depois de uma banquete magnífico é-lhes facultado o conhecimento da história futura, a contemplação do sistema cosmológico e uma visão geográfica do globo. Este mito opõe-se simetricamente e compensatoriamente ao cortejo de dores, frustrações e desespero que a vida historicamente acarreta, em particular a vida cheia de privações que os navegantes suportaram durante vários meses. Exprime a ânsia por uma felicidade absoluta, com a imaginação à idade do ouro ao paraíso perdido. Aliás, essa é um dos componentes do espírito humanista, voltado para a utopia: conceber o homem realizado em plenitude e harmonia, sem as limitações e contradições que a condição e natureza humanas a cada passo impõem; a conciliação dos contrários constitui justamente um dos traços dessa visão de beatitude: a harmonia do amor físico e do amor espiritual; dos gozos sensuais e intelectuais; o feliz encontro do homem e da natureza; a realização dos desejos sem que ressaibos de culpa venham ensombrar a felicidade inocente. Parece expressamente intencional este desejado e merecido encontro de Homens e Deuses, numa ilha recriada que se faz ao caminho dos navegadores e se prepara para os seduzir e retribuir na ideia de que o Amor só com Amor(es) vence e se propaga (Canto IX, estrofe 51, 52, 53). Nota-se que é expressamente intencional o discurso amoroso assumido, cuja dimensão é valorizada pela adequada procura de uma estética textual. As palavras e a sua organização no texto transmitem uma mensagem envolvente e portadora de sentido(s) provocador(es) de renovadas sensações e reflexões por parte de atentos leitores. O recurso estratégico a uma adjetivação rica, abundante, repetida e antitética favorece uma pintura descritiva ao pormenor de quadros idealizados, mas reais, porque se inscrevem nas nossas referências culturais, apelando à melhor compreensão e entendimento do que se pretende captar, o Amor nas suas manifestações mais comuns, mais visíveis e inteligíveis. Os recursos estilísticos recorrentes e selecionados com o mesmo objetivo de clarear a mensagem, mostram para que se veja e se sinta, nomeadamente, através de sucessivas e eloquentes comparações, imagens, personificações, antíteses, repetições, jogos de palavras (trocadilhos), paralelismos, enumerações e gradação das representações. Servem, igualmente, as intenções de (re)dimensionar e complexar o discurso, a utilização da plasticidade do tempo traduzido pelo gerúndio e conjugação perifrástica, traduzindo um movimento de perpétua sedução, permitindo olhar o que merece ser sentido e vivido. O discurso está também possuído de sensações múltiplas, remetendo para a visão, a audição, o olfato, o tato, o paladar, sentidos naturais e humanos que podem ser sensibilizados, aprofundados e harmonizados para o desafio existencial, para a construção da felicidade, enquanto processo de transformação suscetível de ser potencializado pelo Homem. A Ilha dos Amores sublima a competência do Homem na sua própria superação e na busca permanente dos seus ideais, merecendo, pela sua ação, o natural reconhecimento. O gozo da experiência amorosa e felicidade na Ilha mitológica representam a fama grande e nome alto e subido, que o mundo está guardando, isto é, a glorificação pela memória da história. E que as Ninfas do Oceano... Tétis e a Ilha angélica nada mais são do que as honras que imortalizam a vida. Os deleites desta ilha» são as preminências gloriosas, os triunfos, a coroação pela vitória, a admiração e glorificação dos navegantes. Afinal também os deuses da Antiguidade eram deuses porque os homens os tinham transposto a esse estado glorioso, pelas grandes façanhas que tinham realizado, enquanto homens. E segue-se o conselho: se os humanos quiserem alcançar a glória e a fama, lancem-se em acções valorosas, fugindo duma indolência deprimente, que torna as almas escravas. Assim as Ninfas... Tétis e a ilha... os deleites representam o prémio que os navegantes receberão pelos altos feitos realizados, prêmios que, podemos interpretá-lo polissemicamente, são por um lado nitidamente uma imortalização pela glória, por outro e sobretudo a partir das expressões preminências gloriosas... triunfos... fronte coroada de palma e louro poderão ser prémios a doar pelo Rei e pela nação. Estes últimos prêmios, e sobretudo se tivermos em conta os membros da nobreza participantes nas descobertas, poderiam vir a ser estipêndios em dinheiro ou doação de terras, honra, poderes jurisdicionais, títulos de nobreza, ou cargos na administração ultramarina como os de donatários, governadores, vice-reis, capitães de fortalezas ou outros. De qualquer modo só na época do Renascimento com uma visão humanista aberta, que no tempo de elaboração e publicação de Os Lusíadas, estava já claramente a fechar-se, um poeta como Camões poderia lembrar-se de simbolizar todos esses prémios pelo conúbio amoroso e erótico entre os navegantes e as deusas. Vejamos o episódio na íntegra: Canto IX 1 Tiveram longamente na cidade, Sem vender-se, a fazenda os dous feitores, Que os Infiéis, por manha e falsidade, Fazem que não lha comprem mercadores; Que todo seu propósito e vontade Era deter ali os descobridores Da Índia tanto tempo que viessem De Meca as naus, que as suas desfizessem. 2 Lá no seio Eritreu, onde fundada Arsínoe foi do Egípcio Ptolomeu (Do nome da irmã sua assi chamada, Que despois em Suez se converteu), Não longe o porto jaz da nomeada Cidade Meca, que se engrandeceu Com a superstição falsa e profana Da religiosa água Maumetana. 3 Gidá se chama o porto aonde o trato De todo o Roxo Mar mais florecia, De que tinha proveito grande e grato O Soldão que esse Reino possuía. Daqui aos Malabares, por contrato Dos Infiéis, fermosa companhia De grandes naus, pelo Índico Oceano, Especiaria vem buscar cada ano. 4 Por estas naus os Mouros esperavam, Que, como fossem grandes e possantes, Aquelas que o comércio lhe tomavam, Com flamas abrasassem crepitantes. Neste socorro tanto confiavam Que já não querem mais dos navegantes Senão que tanto tempo ali tardassem Que da famosa Meca as naus chegassem. 5 Mas o Governador dos Céus e gentes, Que, pera quanto tem determinado, De longe os meios dá convenientes Por onde vem a efeito o fim fadado, Influiu piadosos acidentes De afeição em Monçaide, que guardado Estava pera dar ao Gama aviso E merecer por isso o Paraíso. 6 Este, de quem se os Mouros não guardavam Por ser Mouro como eles (antes era Participante em quanto maquinavam), A tenção lhe descobre torpe e fera. Muitas vezes as naus que longe estavam Visita, e com piedade considera O dano sem razão que se lhe ordena Pela maligna gente Sarracena. 7 Informa o cauto Gama das armadas Que de Arábica Meca vem cad' ano, Que agora são dos seus tão desejadas, Pera ser instrumento deste dano; Diz-lhe que vêm de gente carregadas E dos trovões horrendos de Vulcano, E que pode ser delas oprimido, Segundo estava mal apercebido. 8 O Gama, que também considerava O tempo que pera a partida o chama, E que despacho já não esperava Milhor do Rei, que os Maumetanos ama, Aos feitores que em terra estão, mandava Que se tornem às naus; e, por que a fama Desta súbita vinda os não impida, Lhe manda que a fizessem escondida. 9 Porém não tardou muito que, voando, Um rumor não soasse, com verdade: Que foram presos os feitores, quando Foram sentidos vir-se da cidade. Esta fama as orelhas penetrando Do sábio Capitão, com brevidade Faz represária nuns que às naus vieram A vender pedraria que trouxeram. 10 Eram estes antigos mercadores Ricos em Calecu e conhecidos; Da falta deles, logo entre os milhores Sentido foi que estão no mar retidos. Mas já nas naus os bons trabalhadores Volvem o cabrestante e, repartidos Pelo trabalho, uns puxam pela amarra, Outros quebram co peito duro a barra, 11 Outros pendem da verga e já desatam A vela, que com grita se soltava, Quando, com maior grita, ao Rei relatam A pressa com que a armada se levava. As mulheres e filhos, que se matam, Daqueles que vão presos, onde estava O Samorim se aqueixam que perdidos Uns têm os pais, as outras os maridos. 12 Manda logo os feitores Lusitanos Com toda sua fazenda, livremente, Apesar dos imigos Maumetanos, Por que lhe torne a sua presa gente. Desculpas manda o Rei de seus enganos; Recebe o Capitão de melhormente Os presos que as desculpas e, tornando Alguns negros, se parte, as velas dando. 13 Parte-se costa abaxo, porque entende Que em vão co Rei gentio trabalhava Em querer dele paz, a qual pretende Por firmar o comércio que tratava; Mas como aquela terra, que se estende Pela Aurora, sabida já deixava, Com estas novas torna à pátria cara, Certos sinais levando do que achara. 14 Leva alguns Malabares, que tomou Per força, dos que o Samorim mandara Quando os presos feitores lhe tornou; Leva pimenta ardente, que comprara; A seca flor de Banda não ficou; A noz e o negro cravo, que faz clara A nova ilha Maluco, co a canela Com que Ceilão é rica, ilustre e bela. 15 Isto tudo lhe houvera a diligência De Monçaide fiel, que também leva, Que, inspirado de Angélica influência, Quer no livro de Cristo que se escreva. Oh, ditoso Africano, que a demência Divina assi tirou de escura treva, E tão longe da pátria achou maneira Pera subir à pátria verdadeira! 16 Apartadas assi da ardente costa As venturosas naus, levando a proa Pera onde a Natureza tinha posta A meta Austrina da Esperança Boa, Levando alegres novas e reposta Da parte Oriental pera Lisboa, Outra vez cometendo os duros medos Do mar incerto, tímidos e ledos. 17 O prazer de chegar à pátria cara, A seus penates caros e parentes, Pera contar a peregrina e rara Navegação, os vários céus e gentes; Vir a lograr o prémio que ganhara, Por tão longos trabalhos e acidentes: Cada um tem por gosto tão perfeito, Que o coração para ele é vaso estreito. 18 Porém a Deusa Cípria, que ordenada Era, pera favor dos Lusitanos, Do Padre Eterno, e por bom génio dada, Que sempre os guia já de longos anos, A g1ória por trabalhos alcançada, Satisfação de bem sofridos danos, Lhe andava já ordenando, e pretendia Dar-lhe nos mares tristes, alegria. 19 Depois de ter um pouco revolvido Na mente o largo mar que navegaram, Os trabalhos que pelo Deus nascido Nas Anfiónias Tebas se causaram, Já trazia de longe no sentido, Pera primo de quanto mal passaram, Buscar-lhe algum deleite, algum descanso, No Reino de cristal, líquido e manso; 20 Algum repouso, enfim, com que pudesse Refocilar a lassa humanidade Dos navegantes seus, como interesse Do trabalho que encurta a breve idade. Parece-lhe razão que conta desse A seu filho, por cuja potestade Os Deuses faz decer ao vil terreno E os humanos subir ao Céu sereno. 21 Isto bem revolvido, determina De ter-lhe aparelhada, lá no meio Das águas, algua ínsula divina, Ornada d' esmaltado e verde arreio; Que muitas tem no reino que confina Da primeira co terreno seio, Afora as que possui soberanas Pera dentro das portas Herculanas. 22 Ali quer que as aquáticas donzelas Esperem os fortíssimos barões (Todas as que têm título de belas, Glória dos olhos, dor dos corações) Com danças e coreias, porque nelas Influïrá secretas afeições, Pera com mais vontade trabalharem De contentar a quem se afeiçoarem. 23 Tal manha buscou já pera que aquele Que de Anquises pariu, bem recebido Fosse no campo que a bovina pele Tomou de espaço, por sutil partido. Seu filho vai buscar, porque só nele Tem todo seu poder, fero Cupido, Que, assi como naquela empresa antiga A ajudou já, nestoutra a ajude e siga. 24 No carro ajunta as aves que na vida Vão da morte as exéquias celebrando, E aquelas em que já foi convertida Perístera, as boninas apanhando; Em derredor da Deusa, já partida, No ar lascivos beijos se vão dando; Ela, por onde passa, o ar e o vento Sereno faz, com brando movimento. 25 Já sobre os Idálios montes pende, Onde o filho frecheiro estava então, Ajuntando outros muitos, que pretende Fazer ua famosa expedição Contra o mundo revelde, por que emende Erros grandes que há dias nele estão, Amando cousas que nos foram dadas, Não pera ser amadas, mas usadas. 26 Via Actéon na caça tão austero, De cego na alegria bruta, insana, Que, por seguir um feio animal fero, Foge da gente e bela forma humana; E por castigo quer, doce e severo, Mostrar-lhe a formosura de Diana. (E guarde-se não seja inda comido Desses cães que agora ama, e consumido). 27 E vê do mundo todo os principais Que nenhum no bem púbrico imagina; Vê neles que não têm amor a mais Que a si sòmente, e a quem Filáucia ensina; Vê que esses que frequentam os reais Paços, por verdadeira e sã doutrina Vendem adulação, que mal consente Mondar-se o novo trigo florecente. 28 Vê que aqueles que devem à pobreza Amor divino, e ao povo caridade, Amam sòmente mandos e riqueza, Simulando justiça e integridade; Da feia tirania e de aspereza Fazem direitoAche os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. e vã severidade; Leis em favor do Rei se estabelecem, As em favor do povo só perecem. 29 Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, Senão o que sòmente mal deseja. Não quer que tanto tempo se releve O castigo que duro e justo seja. Seus ministros ajunta, por que leve Exércitos conformes à peleja Que espera ter co a mal regida gente Que lhe não for agora obediente. 30 Muitos destes mininos voadores Estão em várias obras trabalhando: Uns amolando ferros passadores, Outros hásteas de setas delgaçando. Trabalhando, cantando estão de amores, Vários casos em verso modulando; Melodia sonora e concertada, Suave a letra, angélica a soada. 31 Nas fráguas imortais onde forjavam Pera as setas as pontas penetrantes, Por lenha corações ardendo estavam, Vivas entranhas inda palpitantes; As águas onde os ferros temperavam, Lágrimas são de míseros amantes; A viva flama, o nunca morto lume, Desejo é só que queima e não consume. 32 Alguns exercitando a mão andavam Nos duros corações da plebe ruda; Crebros suspiros pelo ar soavam Dos que feridos vão da seta aguda. Fermosas Ninfas são as que curavam As chagas recebidas, cuja ajuda Não sòmente dá vida aos mal feridos, Mas põe em vida os inda não nascidos. 33 Fermosas são alguas e outras feias, Segundo a qualidade for das chagas, Que o veneno espalhado pelas veias Curam-no às vezes ásperas triagas. Alguns ficam ligados em cadeias Por palavras sutis de sábias magas; Isto acontece às vezes, quando as setas Acertam de levar ervas secretas. 34 Destes tiros assi desordenados, Que estes moços mal destros vão tirando, Nascem amores mil desconcertados Entre o povo ferido miserando; E também nos heróis de altos estados Exemplos mil se vêm de amor nefando, Qual o das moças Bíbli e Cinireia, Um mancebo de Assíria, um de Judeia. 35 E vós, ó poderosos, por pastoras Muitas vezes ferido o peito vedes; E por baixos e rudos, vós, senhoras, Também vos tomam nas Vulcâneas redes. Uns esperando andais nocturnas horas, Outros subis telhados e paredes; Mas eu creio que deste amor indino É mais culpa a da mãe que a do minino. 36 Mas já no verde prado o carro leve Punham os brancos cisnes mansamente; E Dione, que as rosas entre a neve No rosto traz, decia diligente. O frecheiro que contra o Céu se atreve O recebê-la vem, ledo e contente; Vêm todos os Cupidos servidores Beijar a mão à Deusa dos amores. 37 Ela, por que não gaste o tempo em vão, Nos braços tendo o filho, confiada Lhe diz: – "Amado filho, em cuja mão Toda minha potência está fundada; Filho, em quem minhas forças sempre estão, Tu, que as armas Tifeias tens em nada, A socorrer-me a tua potestade Me traz especial necessidade. 38 "Bem vês as Lusitânicas fadigas, Que eu já de muito longe favoreço, Porque das Parcas sei, minhas amigas, Que me hão-de venerar e ter em preço. E porque tanto imitam as antigas Obras de meus Romanos, me ofereço A lhe dar tanta ajuda, em quanto posso, A quanto se estender o poder nosso. 39 "E porque das insídias do odioso Baco foram na Índia molestados, E das injúrias sós do mar undoso Puderam mais ser mortos que cansados, No mesmo mar, que sempre temeroso Lhe foi, quero que sejam repousados, Tomando aquele prémio e doce glória Do trabalho que faz clara a memória. 40 "E pera isso queria que, feridas As filhas de Nereu no ponto fundo, D' amor dos Lusitanos incendidas Que vêm de descobrir o novo mundo, Todas nua ilha juntas e subidas, (Ilha que nas entranhas do profundo Oceano terei aparelhada, De dões de Flora e Zéfiro adornada); 41 "Ali, com mil refrescos e manjares, Com vinhos odoríferos e rosas, Em cristalinos paços singulares, Fermosos leitos, e elas mais fermosas; Enfim, com mil deleites não vulgares, Os esperem as Ninfas amorosas, D' amor feridas, pera lhe entregarem Quanto delas os olhos cobiçarem. 42 "Quero que haja no reino Neptunino, Onde eu nasci, progénie forte e bela; E tome exemplo o mundo vil, malino, Que contra tua potência se rebela, Por que entendam que muro Adamantino Nem triste hipocrisia val contra ela; Mal haverá na terra quem se guarde Se teu fogo imortal nas águas arde." 43 Assi Vénus propôs; e o filho inico, Pera lhe obedecer, já se apercebe: Manda trazer o arco ebúrneo rico, Onde as setas de ponta de ouro embebe. Com gesto ledo a Cípria, e impudico, Dentro no carro o filho seu recebe; A rédea larga às aves cujo canto A Faetonteia morte chorou tanto. 44 Mas diz Cupido que era necessária Ua famosa e célebre terceira, Que, posto que mil vezes lhe é contrária, Outras muitas a tem por companheira: A Deusa Giganteia, temerária, Jactante, mentirosa e verdadeira, Que com cem olhos vê, e, por onde voa, O que vê, com mil bocas apregoa. 45 Vão-a buscar e mandam-a diante, Que celebrando vá com tuba clara Os louvores da gente navegante, Mais do que nunca os d' outrem celebrara. Já, murmurando, a Fama penetrante Pelas fundas cavernas se espalhara; Fala verdade, havida por verdade, Que junto a Deusa traz Credulidade. 46 O louvor grande, o rumor excelente, No coração dos Deuses que indinados Foram por Baco contra a ilustre gente, Mudando, os fez um pouco afeiçoados. O peito feminil, que levemente Muda quaisquer propósitos tomados, Já julga por mau zelo e por crueza Desejar mal a tanta fortaleza. 47 Despede nisto o fero moço as setas, Ua após outra: geme o mar cos tiros; Direitas pelas ondas inquietas Alguas vão, e alguas fazem giros; Caem as Ninfas, lançam das secretas Entranhas ardentíssimos suspiros; Cai qualquer, sem ver o vulto que ama, Que tanto como a vista pode a fama. 48 Os cornos ajuntou da ebúrnea Lua, Com força, o moço indómito, excessiva, Que Tétis quer ferir mais que nenhua, Porque mais que nenhua lhe era esquiva. Já não fica na aljava seta algua, Nem nos equóreos campos Ninfa viva; E se, feridas, inda estão vivendo, Será pera sentir que vão morrendo. 49 Dai lugar, altas e cerúleas ondas, Que, vedes, Vénus traz a medicina, Mostrando as brancas velas e redondas, Que vêm por cima da água Neptunina. Pera que tu recíproco respondas, Ardente Amor, à flama feminina, É forçado que a pudicícia honesta Faça quanto lhe Vénus amoesta. 50 Já todo o belo coro se aparelha Das Nereidas, e junto caminhava Em coreias gentis, usança velha, Pera a ilha a que Vénus as guiava. Ali a fermosa Deusa lhe aconselha O que ela fez mil vezes, quando amava; Elas, que vão do doce amor vencidas, Estão a seu conselho oferecidas. 51 Cortando vão as naus a larga via Do mar ingente pera a pátria amada, Desejando prover-se de água fria Pera a grande viagem prolongada, Quando, juntas, com súbita alegria, Houveram vista da Ilha namorada, Rompendo pelo céu a mãe fermosa De Menónio, suave e deleitosa. 52 De longe a Ilha viram, fresca e bela, Que Vénus pelas ondas lha levava (Bem como o vento leva branca vela) Pera onde a forte armada se enxergava; Que, por que não passassem, sem que nela Tomassem porto, como desejava, Pera onde as naus navegam a movia A Acidália, que tudo, enfim, podia. 53 Mas firme a fez e imóbil, como viu Que era dos Nautas vista e demandada, Qual ficou Delos, tanto que pariu Latona Febo e a Deusa à caça usada. Pera lá logo a proa o mar abriu, Onde a costa fazia ua enseada Curva e quieta, cuja branca areia Pintou de ruivas conchas Citereia. 54 Três fermosos outeiros se mostravam, Erguidos com soberba graciosa, Que de gramíneo esmalte se adornavam, Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa. Claras fontes e límpidas manavam Do cume, que a verdura tem viçosa; Por entre pedras alvas se deriva A sonorosa linfa fugitiva. 55 Num vale ameno, que os outeiros fende, Vinham as claras águas ajuntar-se, Onde ua mesa fazem, que se estende Tão bela quanto pode imaginar-se. Arvoredo gentil sobre ela pende, Como que pronto está pera afeitar-se, Vendo-se no cristal resplandecente, Que em si o está pintando propriamente. 56 Mil árvores estão ao céu subindo, Com pomos odoríferos e belos; A laranjeira tem no fruito lindo A cor que tinha Dafne nos cabelos. Encosta-se no chão, que está caindo, A cidreira cos pesos amarelos; Os fermosos limões ali cheirando, Estão virgíneas tetas imitando. 57 As árvores agrestes, que os outeiros Têm com frondente coma ennobrecidos, Álemos são de Alcides, e os loureiros Do louro Deus amados e queridos; Mirtos de Citereia, cos pinheiros De Cibele, por outro amor vencidos; Está apontando o agudo cipariso Pera onde é posto o etéreo Paraíso. 58 Os dões que dá Pomona ali Natura Produze, diferentes nos sabores, Sem ter necessidade de cultura, Que sem ela se dão muito milhores: As cereijas, purpúreas na pintura, As amoras, que o nome têm de amores, O pomo que da pátria Pérsia veio, Milhor tomado no terreno alheio; 59 Abre a romã, mostrando a rubicunda Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes; Entre os braços do ulmeiro está a jocunda Vide, cuns cachos roxos e outros verdes; E vós, se na vossa árvore fecunda, Peras piramidais, viver quiserdes, Entregai-vos ao dano que cos bicos Em vós fazem os pássaros inicos. 60 Pois a tapeçaria bela e fina Com que se cobre o rústico terreno, Faz ser a de Aqueménia menos dina, Mas o sombrio vale mais ameno. Ali a cabeça a flor Cifísia inclina Sôbolo tanque lúcido e sereno; Florece o filho e neto de Ciniras, Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras. 61 Pera julgar, difícil cousa fora, No céu vendo e na terra as mesmas cores, Se dava às flores cor a bela Aurora, Ou se lha dão a ela as belas flores. Pintando estava ali Zéfiro e Flora As violas da cor dos amadores, O lírio roxo, a fresca rosa bela, Qual reluze nas faces da donzela; 62 A cândida cecém, das matutinas Lágrimas rociada, e a manjerona; Vêm-se as letrasAche os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. nas flores Hiacintinas, Tão queridas do filho de Latona. Bem se enxerga nos pomos e boninas Que competia Clóris com Pomona. Pois, se as aves no ar cantando voam, Alegres animais o chão povoam. 63 Ao longo da água o níveo cisne canta; Responde-lhe do ramo filomela; Da sombra de seus cornos não se espanta Acteon n' água cristalina e bela. Aqui a fugace lebre se levanta Da espessa mata, ou tímida gazela; Ali no bico traz ao caro ninho O mantimento o leve passarinho. 64 Nesta frescura tal desembarcavam Já das naus os segundos Argonautas, Onde pela floresta se deixavam Andar as belas Deusas, como incautas. Alguas, doces cítaras tocavam; Alguas, harpas e sonoras frautas; Outras, cos arcos de ouro, se fingiam Seguir os animais, que não seguiam. 65 Assi lho aconselhara a mestra experta: Que andassem pelos campos espalhadas; Que, vista dos barões a presa incerta, Se fizessem primeiro desejadas. Alguas, que na forma descoberta Do belo corpo estavam confiadas, Posta a artificiosa formosura, Nuas lavar se deixam na água pura. 66 Mas os fortes mancebos, que na praia Punham os pés, de terra cobiçosos (Que não há nenhum deles que não saia), De acharem caça agreste desejosos, Não cuidam que, sem laço ou redes, caia Caça naqueles montes deleitosos, Tão suave, doméstica e benina, Qual ferida lha tinha já Ericina. 67 Alguns, que em espingardas e nas bestas Pera ferir os cervos, se fiavam, Pelos sombrios matos e florestas Determinadamente se lançavam; Outros, nas sombras, que de as altas sestas Defendem a verdura, passeavam Ao longo da água, que, suave e queda, Por alvas pedras corre à praia leda. 68 Começam de enxergar subitamente, Por entre verdes ramos, várias cores, Cores de quem a vista julga e sente Que não eram das rosas ou das flores, Mas da lã fina e seda diferente, Que mais incita a força dos amores, De que se vestem as humanas rosas, Fazendo-se por arte mais fermosas. 69 Dá Veloso, espantado, um grande grito: – "Senhores, caça estranha (disse) é esta! Se inda dura o Gentio antigo rito, A Deusas é sagrada esta floresta. Mais descobrimos do que humano esprito Desejou nunca, e bem se manifesta Que são grandes as cousas e excelentes Que o mundo encobre aos homens imprudentes. 70 "Sigamos estas Deusas e vejamos Se fantásticas são, se verdadeiras." Isto dito, veloces mais que gamos, Se lançam a correr pelas ribeiras. Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos, Mas, mais industriosas que ligeiras, Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando, Se deixam ir dos galgos alcançando. 71 De u'a os cabelos de ouro o vento leva, Correndo, e da outra as fraldas delicadas; Acende-se o desejo, que se ceva Nas alves carnes, súbito mostradas. Ua de indústria cai, e já releva, Com mostras mais macias que indinadas, Que sobre ela, empecendo, também caia Quem a seguiu pela arenosa praia. 72 Outros, por outra parte, vão topar Com as Deusas despidas, que se lavam; Elas começam súbito a gritar, Como que assalto tal não esperavam; Uas, fingindo menos estimar A vergonha que a força, se lançavam Nuas por entre o mato, aos olhos dando O que às mãos cobiçosas vão negando; 73 Outra, como acudindo mais depressa À vergonha da Deusa caçadora, Esconde o corpo n' água; outra se apressa Por tomar os vestidos que tem fora. Tal dos mancebos há que se arremessa, Vestido assi e calçado (que, co a mora De se despir, há medo que inda tarde) A matar na água o fogo que nele arde. 74 Qual cão de caçador, sagaz e ardido, Usado a tomar na água a ave ferida, Vendo [ò] rosto o férreo cano erguido Pera a garcenha ou pata conhecida, Antes que soe o estouro, mal sofrido Salta n' água e da presa não duvida, Nadando vai e latindo: assi o mancebo Remete à que não era irmã de Febo. 75 Leonardo, soldado bem disposto, Manhoso, cavaleiro e namorado, A quem Amor não dera um só desgosto Mas sempre fora dele mal tratado, E tinha já por firme pros[s]uposto Ser com amores mal afortunado, Porém não que perdesse a esperança De inda poder seu fado ter mudança, 76 Quis aqui sua ventura que corria Após Efire, exemplo de beleza, Que mais caro que as outras dar queria O que deu, pera dar-se, a natureza. Já cansado, correndo, lhe dizia: – "Ó formosura indina de aspereza, Pois desta vida te concedo a palma, Espera um corpo de quem levas a alma! 77 "Todas de correr cansam, Ninfa pura, Rendendo-se à vontade do inimigo; Tu só de mi só foges na espessura? Quem te disse que eu era o que te sigo? Se to tem dito já aquela ventura Que em toda a parte sempre anda comigo, Oh, não na creias, porque eu, quando a cria, Mil vezes cada hora me mentia. 78 "Não canses, que me cansas! E se queres Fugir-me, por que não possa tocar-te, Minha ventura é tal que, inda que esperes, Ela fará que não possa alcançar-te. Espera; quero ver, se tu quiseres, Que sutil modo busca de escapar-te; E notarás, no fim deste sucesso, ‘Tra la spica e la man qual muro he messo.’ 79 "Oh! Não me fujas! Assi nunca o breve Tempo fuja de tua formosura; Que, só com refrear o passo leve, Vencerás da fortuna a força dura. Que Emperador, que exército se atreve A quebrantar a fúria da ventura Que, em quanto desejei, me vai seguindo, O que tu só farás não me fugindo? 80 "Pões-te da parte da desdita minha? Fraqueza é dar ajuda ao mais potente. Levas-me um coração que livre tinha? Solta-mo e correrás mais levemente. Não te carrega essa alma tão mesquinha Que nesses fios de ouro reluzente Atada levas? Ou, despois de presa, Lhe mudaste a ventura e menos pesa? 81 "Nesta esperança só te vou seguindo: Que ou tu não sofrerás o peso dela, Ou na virtude de teu gesto lindo Lhe mudarás a triste e dura estrela. E se se lhe mudar, não vás fugindo, Que Amor te ferirá, gentil donzela, E tu me esperarás, se Amor te fere; E se me esperas, não há mais que espere." 82 Já não fugia a bela Ninfa tanto, Por se dar cara ao triste que a seguia, Como por ir ouvindo o doce canto, As namoradas mágoas que dizia. Volvendo o rosto, já sereno e santo, Toda banhada em riso e alegria, Cair se deixa aos pés do vencedor, Que todo se desfaz em puro amor. 83 Oh, que famintos beijos na floresta, E que mimoso choro que soava! Que afagos tão suaves! Que ira honesta, Que em risinhos alegres se tornava! O que mais passam na manhã e na sesta, Que Vénus com prazeres inflamava, Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo; Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo. 84 Destarte, enfim, conformes já as fermosas Ninfas cos seus amados navegantes, Os ornam de capelas deleitosas De louro e de ouro e flores abundantes. As mãos alvas lhe davam como esposas; Com palavras formais e estipulantes Se prometem eterna companhia, Em vida e morte, de honra e alegria. 85 U'a delas, maior, a quem se humilha Todo o coro das Ninfas e obedece, Que dizem ser de Celo e Vesta filha, O que no gesto belo se parece, Enchendo a terra e o mar de maravilha, O capitão ilustre, que o merece, Recebe ali com pompa honesta e régia, Mostrando-se senhora grande e egrégia. 86 Que, despois de lhe ter dito quem era, Cum alto exórdio, de alta graça ornado, Dando-lhe a entender que ali viera Por alta influïção do imóbil fado, Pera lhe descobrir da unida esfera Da terra imensa e mar não navegado Os segredos, por alta profecia, O que esta sua nação só merecia, 87 Tomando-o pela mão, o leva e guia Pera o cume dum monte alto e divino, No qual ua rica fábrica se erguia, De cristal toda e de ouro puro e fino. A maior parte aqui passam do dia, Em doces jogos e em prazer contino. Ela nos paços logra seus amores, As outras pelas sombras, entre as flores. 88 Assi a fermosa e a forte companhia O dia quási todo estão passando Nua alma, doce, incógnita alegria, Os trabalhos tão longos compensando. Porque dos feitos grandes, da ousadia Forte e famosa, o mundo está guardando O prémio lá no fim, bem merecido, Com fama grande e nome alto e subido. 89 Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas, Tétis e a Ilha angélica pintada, Outra cousa não é que as deleitosas Honras que a vida fazem sublimada. Aquelas preminências gloriosas, Os triunfos, a fronte coroada De palma e louro, a glória e maravilha, Estes são os deleites desta Ilha. 90 Que as imortalidades que fingia A antiguidade, que os Ilustres ama, Lá no estelante Olimpo, a quem subia Sobre as asas ínclitas da Fama, Por obras valerosas que fazia, Pelo trabalho imenso que se chama Caminho da virtude, alto e fragoso, Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso, 91 Não eram senão prémios que reparte, Por feitos imortais e soberanos, O mundo cos varões que esforço e arte Divinos os fizeram, sendo humanos. Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, Eneas e Quirino e os dous Tebanos, Ceres, Palas e Juno com Diana, Todos foram de fraca carne humana. 92 Mas a Fama, trombeta de obras tais, Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos De Deuses, Semideuses, Imortais, Indígetes, Heróicos e de Magnos. Por isso, ó vós que as famas estimais, Se quiserdes no mundo ser tamanhos, Despertai já do sono do ócio ignavo, Que o ânimo, de livre, faz escravo. 93 E ponde na cobiça um freio duro, E na ambição também, que indignamente Tomais mil vezes, e no torpe e escuro Vício da tirania infame e urgente; Porque essas honras vãs, esse ouro puro, Verdadeiro valor não dão à gente: Milhor é merecê-los sem os ter, Que possuí-los sem os merecer. 94 Ou dai na paz as leis iguais, constantes, Que aos grandes não dêem o dos pequenos, Ou vos vesti nas armas rutilantes, Contra a lei dos imigos Sarracenos: Fareis os Reinos grandes e possantes, E todos tereis mais e nenhum menos: Possuireis riquezas merecidas, Com as honras que ilustram tanto as vidas. 95 E fareis claro o Rei que tanto amais, Agora cos conselhos bem cuidados, Agora co as espadas, que imortais Vos farão, como os vossos já passados. Impossibilidades não façais, Que quem quis, sempre pôde; e numerados Sereis entre os Heróis esclarecidos E nesta «Ilha de Vénus» recebidos. http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/os_lusiadas_a_ilha_dos_amores

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Animação do conto "Entre Santos" de Machado de Assis