quarta-feira, 4 de julho de 2012

Episódio "A história de Portugal" - Luis Vaz de Camões

http://arpose.blogspot.com.br/2011/06/cromos-18-historia-de-portugal.html

Conto " M'boitatá" - Simões Lopes Neto

Foi assim: num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia. Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria. Os homens viveram abichornados, na tristeza dura; e porque churrasco não havia, não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo canjica insossa; os borralhos estavam se apagando e era preciso poupar os tições... Os olhos andavam tão enfarados da noite, que ficavam parados, horas e horas, olhando semver as brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes. Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para abter na querência; até nem sorro daria no seu próprio rastro! E a noite velha ia andando... ia andando... Minto: No meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar: era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do último sol eque vigiava sempre, esperando a volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já... Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu - quero-quero! - tão claro, vindo de lá do fundo da escuridão, ia se aguentando a esperança dos homens, amontoados no redor avermelhado das brasas. Fora disto, tudo omais era silêncio; e de movimento, então, nem nada. Minto: Na última tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d'alva, nessa última tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga d'água que levou um tempão a cair, e durou... e durou... Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fias coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os passos cresceram e todo aquele peso d'água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas é que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro. E eram terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E então!... Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam na enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas boiavam os ratões e outros miúdos. E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra-grande, a - boiguaçu- que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida. Ela então acordou-se e saiu, rabeando. Começou depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a comer carniça. Mas só comia os olhos e nada, nada mais. A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia. Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu. A tambeira que só come trevo maduro, dá no leite o cheiro doce do milho verde; o cerdo que come carne de bagualnem vinte alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho e o biguá matreiro até no sangue têm cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus arrancos. O homem de olhos limpos é guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidado com os amarelos; e, toma tenência doble com os raiados e baços!... Assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que tantos olhos comeu. Todos - tantos, tantos! que a cobra-grande comeu -, guardavam, entrenhado e luzindo, um rastilho da última luz que eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu... E os olhos - tantos, tanto! - com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no princípio um punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma braçada... E vai, Como a boiguaçu não tinha pêlos como o boi, nem escamas como o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando transparente, transparente, clareando pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram sendo esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos. Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela primeira vez viram a boiguaçu tão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamam-na desde então, de boitatá, cobra do fogo, boitatá, a boitatá! E muitas vezes a boitatá rondou as rancherias, faminta, sempre que nem chimarrão. Era então que o téu-téu cantava, como o bombeiro. E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente, transparente - tatá, de fogo- que media mais braças que três laços de conta e ia aluminando baçamente as carquejas... E depois, choravam. Choravam, desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz que só os olhos e a boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os das carniças a enfaravam... Mas, como dizia: na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da boitatá, e era ela que o téu-téu cantava de vigia, em todos os flancos da noite. Passado um tempo, a boitatá morreu: de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas lhe não deram substância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos... Depois de rebolar rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo dela desmanchou-se, também como cousa da terra, que se estraga de vez. E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí. E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo! Minto: apareceu sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no coloreado do céu; depois se foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir um rastro de luz..., depois a metade de uma cambota de fogo... e já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até vir a pino e descambar, como dantes, e desta feita, para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre. Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, para nascer de novo; só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu. Anda arisca e só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mais se infesta. E no inverno, de entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada. Mas de verão, depois da quentura dos mormaços, começa então o seu fadário. A boitatá, toda enroscada, como uma bola - tatá, de fogo! -, empeça a correr o campo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!... É um fogo amarelo e azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos manatiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagado... e quando um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito! Maldito! Tesconjuro! Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertado e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o láco, fazer uma armada grande e atirar-lha por cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa! A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda. Campeiro precatado! Reponte o seu gado de querência da boitatá: o pastiçal, aí, faz peste... Tenho visto! M'boitatá publicado por Roberto Cohen em 18 de Dezembro de 2003. Fonte Livro "Lendas do Sul" de J. Simões Lopes Neto. Editora Globo. 11a edição. 1983 http://www.paginadogaucho.com.br/lend/mboi.htm

Do livro "Contos Gauchescos e Lendas do Sul" Autor: João Simões Lopes Neto "O NEGRINHO DO PASTOREIO"

NAQUELE TEMPO os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas; somente nas volteadas se apanhava a gadaria xucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos... Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito. Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas. Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um naco de fumo… e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era o seu próprio couro que ele estava lonqueando... Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino cargoso como uma mosca, para um baio cabos-negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam somente o — Negrinho. A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não a tem. Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio; depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o judiava e se ria. *** Um dia depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro. No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande. Erva-Caúna – Variedade de mate, de qualidade inferior, e amargo. Cacimbas – nascente d´aua – olho d´agua. Onças – aqui, moeda da época. Entre os dois parelheiros, a gauchada não sabia se decidir, tão perfeito era e bem lançado cada um dos animais. Do baio era fama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não lhe viam as patas baterem no chão... E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais agüente e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta... As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços. —Pelo baio! Luz e doble!… —Pelo mouro! Doble e luz!... Os corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois as obrigadas; e quando foi na última, fizeram ambos a sua senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os parelheiros meneando cascos, que parecia uma tormenta... — Empate! Empate! — gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passava a parelha veloz, compassada como numa colhera. — Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! — gemia o Negrinho. — Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! hip! hip! hip!... E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio. — Se o corta-vento ganhar é só para os pobres!... retrucava o outro corredor. Hip! hip! E cerrava as esporas no mouro. Mas os fletes corriam, compassados como numa colhera, Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinha aos tirões… mas sempre juntos, sempre emparelhados. E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de supetão, pôs-se em pé e fez uma caravolta, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de em pêlo, agarrou-se como um ginetaço. — Foi mau jogo! — gritava o estancieiro. — Mau jogo! — secundavam os outros da sua parceria. A gauchada estava dividida no julgamento da carreira; mais de um torena coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé... Mas o juiz, que era um velho do tempo da guerra de Sepé-Tíaraju, era um juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo. Abanando a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem: — Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro, Quem perdeu, que pague. Eu perdi cem gateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei! Não havia o que alegar. Despeitado e furioso, o estancieiro pagou a parada, à vista de todos, atirando as mil onças de ouro sobre o poncho do seu contrário, estendido no chão. Torena – indivíduo forte valente, destemido. E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhador mandou distribuir tambeiros e leiteiras, côvados de baeta e baguais e deu o resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreiras seguiram com os changueiritos que havia. *** O estancieiro retirou-se para a sua casa e veio pensando, pensando calado, em todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado a meia espalda… O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma. E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho. Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilha falou assim: — Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos negros... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca! O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando. Veio o sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho, varado de fome e já sem força nas mãos, enleou a soga num pulso e deitou-se encostado a um cupim. Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar, e todas olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos na escuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se dele, paradas no ar, sem barulho nas asas. O Negrinho tremia, de medo... porém de repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu. E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; o Cruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três-Marias: a estrela-d'alva subiu... Então vieram os guaraxains ladrões e farejaram o Negrinho e cortaram a guasca da soga. O baio sentindo-se solto rufou a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas. O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram, dando berros de escárnio. Os galos estavam cantando, mas nem o céu nem as barras do dia se enxergava: era a cerração que tapava tudo. E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou. *** O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos não estavam. O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho. E quando era já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear o perdido. Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho pensou na sua madrinha Nossa Senhora e foi ao oratório da casa, tomou o coto de vela acesa em frente da imagem e saiu para o campo. Por coxilhas e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros e nas restingas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta ia pingando cera no chão; e de cada pingo nascia uma nova luz, e já eram tantas que clareavam tudo. O gado ficou deitado, os touros não escarvaram a terra e as manadas xucras não dispararam... Quando os galos estavam cantando, como na véspera, os cavalos relincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio e tocou por diante a tropilha, até a coxilha que o seu senhor lhe marcara. E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu... Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim e no mesmo instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando com a Virgem, sua madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceram nem as corujas agoureiras nem os guaraxains ladrões; porém pior do que os bichos maus, ao clarear o dia veio o menino, filho do estancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram, disparando campo fora, retouçando e desguaritando-se nas canhadas. O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seu pai que os cavalos não estavam lá... E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou... *** O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos, a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho... dar-lhe até ele não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo… O Negrinho chamou pela Virgem sua madrinha e Senhora Nossa, deu um suspiro triste, que chorou no ar como uma música, e pareceu que morreu... E como já era noite e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o sangue e os ossos... E assanhou bem as formigas, e quando elas, raivosas, cobriam todo o corpo do Negrinho e começaram a trincá-la é que então ele se foi embora, sem olhar para trás. Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno... Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dos pássaros e a casca das frutas. Coto – pedaço; mesmo que toco. Passou a noite de Deus e veio a manhã e o sol encoberto. E três dias houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho. *** A peonada bateu o campo, porém ninguém achou a tropilha e nem rastro. Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava do corpo do escravo. Qual não foi o seu grande espanto, quando chegado perto, viu na boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda!... O Negrinho, de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto a tropilha dos trinta tordilhos... e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, o estancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no céu... Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante do escravo. E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pêlo e sem rédeas; no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope. E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não chorou, e nem se riu. *** Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte do Negrinho, devorado na panela do formigueiro. Porém logo, de perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo... E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia — da mesma hora — de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pêlo, em um cavalo baio!… Então, muitos acenderam velas e rezaram o Padre Nosso pela alma do judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver. *** Todos os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: está metido em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas amigas; a sua tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por. lá, os seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas ao nascer do sol do terceiro dia, o baio relincha. perto do seu ginete; o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê ninguém, nem na ponta, nem na culatra. *** Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais, bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas e desce às canhadas. O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm. Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo —Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi... Foi por ai que eu perdi!... Se ele não achar… ninguém mais. Culatra – Retaguarda de um rebanho. Prendas – Jóias. Algo que se preza. http://e-gauderios.blogspot.com.br/2008/12/o-o-negrinho-do-pastoreio-joo-simes.html

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Conto "O "Menininho do Presépio" - Simões Lopes Neto

- Olhe! Aí está um peão do major Vieira; jogo o pescoço se ele não traz invite pra ir lá, hoje, festejar o Natal, na estância!... Eu sei!... Aquele é gauchão buenaço! Eu, se fosse o patrãozinho, ia. Ia, só pra ver o que é uma gente de devoção. E é que o seu major Vieira não era assim, não; pro caso que ele, em moço, até que era um virado, da gente se benzer três vezes! O major Vieira quando era cadete haraganeava muito pela rancheria dos postos. A estância era grande, e entre agregados e posteiros havia um povaréu; o patrão velho, pai dele, era mui esmoleiro e não gostava de, perto dele, ver ninguém com cara de fome. Mas o diacho era que o que o velho fazia com as mãos o cadete desmanchava coos pés... O mocito era abusador, e mais duma feita saiu ventando de certos ranchos daqueles pagos... Sim, que um pai cria uma filha não é pra carniça de gaudério!.. Por isso é que já os antigos inventaram o casamento. A divisa da estância, no fundo, faz uma quebrada forte, assim como o cotovelo do meu braço; nesta ponta aqui, onde está a minha mão, fica o Lagoão das Lontras, e mais pra cá passa a estrada real. Em certos tempos a gadaria pegava a costear o lagoão e andando, andando, entrava na estrada e... adeus! Assim perdeu-se numa primavera uma ponta de novilhos que se evaporaram como sereno,., Foi um estafaréu, na estância, por causa disto; o patrão velho ficou buzina com o capataz, que relaxou os repontes, e quase mandou lonquear um certo Miguelão, que passava todo o santo dia lagarteando na reserva do rancho, e de noite nunca parava em casa... Parece que eu estou lhe enredando o rastro, mas não 'Stou, não; vancê escuite. É que este Miguelão não era trigo limpo; e tinha uma filha que era uma criatura boa como uma santa, morocha linda como uma princesa. E vai, o desgraçado obrigou a menina a casar-se com um sujeito sem eira nem beira, e que diziam à boca pequena que era parceiro nas velhacadas do Miguelão. Era um mais que mouro, e meio corcunda, e tinha um lanho grande entre a orelha e a nuca; e mal encarado, era. Amigo! A quincha dos ranchos esconde tanta cousa como os telhados dos ricos!... Marido e mulher davam assim uma idéia esquisita: vancê já reparou quando abre um cacho de flor num jerivá velho, de casca esbranquiçada, cheio de talos secos pendurados e um que outro pendão esfiapado, que já deu coquinhos?... O jerivá é uma árv'e tristonha, mas quando bota um cacho de flor fica alegre, de enfeitada, Aquele pendão amarelo, lá em cima, chama os olhos da gente, parece um favo de cera, de tão limpo e dourado; chama as mandaçaias, os passarinhos, os mangangás, as joaninhas; dá cheiro que é doce; é uma boniteza pra todos os viventes. Assim era aquele casal: ele como o jerivá velho, ela como um cacho de flor, Ela chamava-se nhã Velinda: e chorava muito, às vezes. Por quê? Quem sabe lá... Depois daquele sumiço dos novilhos, o cadete Vieira passou a recorrer o campo por aquelas bandas; a bolear avestruzes por aquelas várzeas; a correr veados por aqueles meios; a caçar mulitas naquela costa; e até numa noite de breu arranjou uma perdida -. 'magine! mais vaqueano que sono! - mas perdida foi que soube rumbear sobre o rancho do Miguelão... Cousas de rapaz; que a nhã Velinda, essa, era de confiança. Lá porque era moça, quase uma criança perto do marido, lá por isso não era motivo pra qualquer um chegar-se de buçalete em mão, como se faz pra uma redomona, pra amanusear-lbe desde a tábua do pescoço até as ancas... Mas o cadete gostava da moça numa paixão de verdade, diferente de quantas cavaleiradas estava avezado a fazer. Era uma adoração, quase um medo de ofender a querida do seu coração; perdia a voz pra falar com ela, enredava-se nas esporas, perdia o entono de todo o seu jeito, e todo ele vivia só nos olhos quando atentava na formosura do seu rosto. Entrementes foi acabando o ano e já era sobre o Natal. E vai a família do patrão velho armou um presépio na sala grande da estância; e ele mesmo mandou avisar o vizindário todo que a sia-dona convidava para se cantar um terço de festa, na noite santa. E veio tudo, velhada e crianças, moçada, namorados, e até alguns andantes, que estavam de pouso, ficaram, todos, pra louvar a Deus na noite mais pequena do ano. O cadete andava no meio do povo caçoísta, dançarino e pisa-flores, mas no que chegou a gente do Miguelão, já se foi pondo como um céu amontoado, emburrado, de dar nas vistas. Houve jantarola e doçaria, na sombra das figueiras. Escureceu; a sala grande estava fechada, e as moças da estância lá dentro, preparando as luminárias; enquanto o velho e a sia-dona pauteavam com a gente sisuda, embaixo da ramada grande, em frente da casa, a gurizada corria na pega dos vaga-lumes, rodando por cima dos cachorros ou fazendo provas de burlantins, nos cabeçalhos das canetas; do galpão vinha o zunzum da peonada; na sombra do campo não se via nada, mas de lá vinham relinchos e mugidos, cracrás das corujas e uais!.. dos graxains. E no ar, como uma cerração que não se via, andava o fartum dos churrascos. Por um segredo do destino a sia-dona mandou o cadete ver se as luminárias estavam ou não prendidas; e vai, o moço, no entrar a porta, topou de cara a cara com a nhã Velinda que saia, justamente para vir chamar os donos da casa; toparam-se as criaturas e miraram-se, num clarão que só elas viram... As mãos se encontraram. .. e num de-repente, num silêncio, num tirão das suas almas, na pressa e no lusco-fusco, perto da gentama, numa relancina de corisco, as duas bocas famintas se encontraram...e um beijo, um beijo que jurou pelos dois, para toda a vida, um beijo só derrubou todas as negaças, como uma represa de açude aluída é derrubada por uma muita descida de águas... Vê vancê, a gente sabe falar, dizer muitas enredices adocicadas, mas às vezes a palavra nem dá pra partir... e caladito no mais, um simples beijo, largado de tronco, chega ao laço, folheirito, de rebenque alçado! Pobres! Nesse passo cruzou na mesma porta o Miguelão e bispou o caso, e decerto já lo foi xeretear ao genro, e atossicá-lo, suscitando-lhe maldades... Mas logo escancararam as janelas e a claridade da sala alumiou o terreiro; foi um alarido de contentamento, todos se ajuntaram e a sia-dona, puxando a ponta, entrou, para principiar o rosário. E aquele bandão de gente entrou e foi-se acomodando, olhando com ar de riso pasmado, toda só dizendo: o presépio! o presépio! o presépio! Fazia a modo uma ramada no alto de uns cerritos, e fingindo grotas e sangões e umas reboleiras; havia esparramados uns "alimais" entre boizinhos e ovelhas de brinquedo e outros enfeites; e mais uns figurões mui calamistrados, de coroa, que pareciam reis, e, pro caso, um, que era negro retinto, era o mais empacholado. E perto destes, sobre a ponta do presépio, estava então a Senhora Virgem e o Senhor São José, e entre eles, acamado numas palhinhas de milhã e uns musgos e umas penugens, estava o Menininho Jesus, ruivito e rosado, nuzinho em pêlo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por mostrar as vergonhinhas do seu corpinho de inocente. Todos se ajoelharam de roda, mas foi nessa ponta do presépio que a nhã Velinda ajoelhou-se; e no costado dela, como um precipício ou um encorrentado, aí amoitou-se o cadete Vieira, talvez até para dar o seu peito em resguardo dalgum perigo... Não lhe conto nada!... Quando pegou a cantoria do rosário e no cantante da reza a gente se foi enquartelando e emparelhando as vozes, que era uma boniteza de ouvir, por aí os olhos dela estavam como amarrotados no presépio, mas os olhos dele estavam no rosto dela, como se ai estivesse o próprio presépio, com as suas velinhas e prateados e bichinhos mimosos...; era até um pecado do inferno, aquela maneira de adorar gente, ali assim, nas barbas dos santos e da Senhora Virgem e do seu Menino!... Mas porém, lá da porta, outro olhar, raiado de sangue, estava vendo tudo; por certo que alguma loucura de cabeça atacou aquele cristão velho, porque, num soflagrante, sem um deus-te-salve! - o aflito aquele meneou os passos, derrubando gente, e logo o facão relampeou na direitura do coração de nhã Velinda!... Houve um grito d'espanto pro mode o desaforo do desatinado. -Jesus!... foi o grito de todas as bocas. Ah! patrãozinho!... Olhe que às vezes, na luz das velas bentas, se passam cousas de deixar um golpeado qualquer mais, mais aplastado que mancarão reiúno em mão de recruta... Quando a ponta do ferro matador estava a uma mão atravessada... a quatro dedos só da carne macia, aí - credo! louvado seja Deus! - aí rolou da sua caminha de milhã... rolou e caiu no boleado do seio da moça, na canhadita dos dois, caiu no regaço de nhã Velinda o Menininho Jesus, como uma defesa... e aí no regaço delicado ficou, como um dono na sua casa... E o facão matador sentou, tironeado... depois recuando, «minuindo", caiu mermado, mal seguro na mão sem força, do braço sem vontade, e o cuerudo aquele deu costas e se botou porta fora e o Miguelão com ele, boquejando. Tempos depois se soube que lo mataram, num entrevero, numa bochinchada de carreiras. Jerivá torto não dá ripa!... Os velhos lá ouviram do cadete e de nhã Velinda o que havia, e lá arrumaram as cousas. O que le conto é que o seu major Vieira, ainda em cadete, se casou com a nhã Velinda, e que aquele tal Menininho Jesus ainda hoje é o figurão do oratório e éo mesmíssimo do presépio que, bá mais de cinqüenta anos, se arma sempre na estância, no festo do Natal. - Não lhe parece que houve um milagre? Claro! Foi por causa do Menininho que... Se o diabinho é tão milagroso!... http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

Episódio "A máquina do mundo"

"Vês aqui a grande máquina do mundo, Etérea e elemental, que fabricada Assim foi do Saber alto e profundo, Que é sem princípio e meta limitada. Quem cerca em derredor este rotundo Globo e sua superfície tão limada, É Deus: mas o que é Deus ninguém o entende, Que a tanto o engenho humano não se estende." (Canto X, estrofe 80) Comentário: Nessa estrofe, a deusa Vênus apresenta aos portugueses a máquina do mundo, uma esfera perfeita, espécie de maquete do universo, na qual está contido tudo o que nele existe. As mentes mortais logo perguntam: se nessa esfera está tudo o que há, então o que está por fora dela? A deusa responde que, em volta do globo, está Deus. Alguém poderia perguntar: e o que está além de Deus? Mas logo somos advertidos de que o entendimento de Deus está além da compreensão humana; não devemos, portanto, insistir na questão. Camões adota em seu livro a concepção de Ptolomeu, segundo a qual a Terra ocuparia o centro do universo, sendo envolvida por sete esferas celestes, como as camadas de uma cebola, cada uma correspondendo a um dos sete planetas então conhecidos. O paraíso celeste, ou empíreo, estaria localizado na sétima esfera, a mais luminosa e próxima de Deus. http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/literatura/materia_409177.shtml#
Máquina do mundo
A Máquina do Mundo diz respeito ao cosmos, ao sistema do mundo. De acordo com a visão grega e ptolomaica, através das notas de Pedro Nunes, no Tratado da Esfera a partir de trabalhos como a De Sphaera do astrónomo inglês Sacrobosco, seguidas por Camões em Os Lusíadas, o mundo apresentava uma região celestial e outra elementar. Pedro Nunes, no Tratado da Esfera, publicado em 1537, afirma que "A universal máquina do Mundo divide-se em duas partes: celestial e elementar. A parte elementar é sujeita a contínua alteração: e divide-se em quatro, a terra a qual está como centro do mundo no meio assentada, segue-se logo a água e ao redor dela o ar e logo o fogo puro que chega ao céu da lua." A região celestial é composta por nove esferas a "saber, esfera da Lua, do Mercúrio, de Vénus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, das estrelas fixas, e a do derradeiro céu". A Máquina do Mundo, desde Ptolomeu, tinha a Terra no centro e em seu redor, em círculos concêntricos, Diana (Lua), Mercúrio, Vénus, Febo (Sol), Marte, Júpiter e Saturno. Envolvendo estes sete céus, havia o Firmamento, seguido pelo Céu Áqueo ou Cristalino, depois o Primeiro móbil, esfera que arrasta todas as outras consigo. Por último ficava o Empíreo. No Canto X de Os Lusíadas, Camões fala da "grande máquina do Mundo" (X, 80), demonstrando um conhecimento bastante preciso da cosmogonia da época, ainda sem as conceções de Copérnico, do sistema heliocêntrico. http://www.infopedia.pt/$maquina-do-mundo

terça-feira, 26 de junho de 2012

Conto "Batendo orelha" - Simões Lopes Neto

Nasceu o potrilho, lindo e gordo, filho de égua boa leiteira, crioula de campo de lei. O guri era mimoso, dormindo em cama limpa e comendo em mesa farta. Já de sobreano fizeram uma recolhida grande, sentaram-lhe uns pealos, apertaram-no pelas orelhas e pela cola e a marca em brasa chiou-lhe na picanha. Andaria nos oito anos quando meteram-lhe nas mãos a cartilha das letras e o mestre-régio começou a indicar-lhe as unhas, de palmatoadas. O potrilho couceou, na marca. O menino meteu fios de cabelo nos olhos da santa-luzia... Em potranco acompanhava a manada e retouçava com as potrancas, sem mal nenhum. O rapazinho rezava o terço e brincava de esconder com as meninas... o que custou-lhe uma sapeca de vara de marmeleiro. Quando o potrilho foi-se enfeitando para repontar, o pastor velho meteu-lhe os cascos e mais, a dente, botou-o campo fora: fosse rufiar lá longe!... O gurizote, já taludo, quis passar-se de mais com uma prima...; o tio deu-lhe um chá-de-casca-de-vaca, que saiu cinza e fedeu a rato!... O potro andava corrido, farejando... Mas nem uma petiça arrastadeira d'água e poronguda, achou, para consolo da vida. Té que o caparam. O mocito, que era pimpão, foi mandado incorporar. Sentaram-lhe a farda no lombo. Mal sarou da ferida o potro foi pegado: corcoveou, berrou; quebraram-lhe a boca a tirões, dividiram-lhe a barriga com a cincha; quis planchar-se, e lanharam-lhe as virilhas a rebenque e as paletas a roseta de espora. Tiraram-lhe as cócegas... Ficou redomão. O recruta marcou passo, horas, pra aprender; entrou na forma; agüentou descomposturas; deu umas bofetadas num cabo e gurniu solitária e guarda dobrada, por quinze dias. Cortaram-lhe os cabelos à escovinha e ficou apontado. Era o faxineiro do esquadrão. Houve uns apuros de precisão... O rocim foi vendido em lote, para o regimento. Tocou a reunir: era uma ordem de marcha, urgente. O faxineiro recebeu lança, espadão e tercerola. Quando a cavalhada chegou o primeiro serviço dos sargentos foi assinalar os novos; era simples e ligeiro: um talho de faca na orelha, rachando-a. Bagual assim, virava reiúno. Quando tocou o bota-sela, o faxineiro estava na porteira, de buçal na mão, esperando a vez. O laçador laçava, chamava a praça e esta enfrenava... e cada um roia o osso que lhe tocava. - Chê! Enfrena!... Foi o reiúno que caiu pro recruta. Aí se juntaram os dois parecidos, o bicho e o homem. E a sorte levou os dois, de parceria, pelo tempo adiante. Curtiram fome, juntos, cada um, do seu comer, E sede. E frio. E cansaço, mataduras e manqueiras; cheiros de pólvora e respingos de sangue, barulho de músicas, tronar grosso e pipoquear, nas guerrilhas. E de saúde, assim, assim... Um teve sarnagem, o outro apanhou muquiranas; se um batia a mutuca, o outro caçava as pulgas. Quando, no verão, o reiúno pelechava, também o faxineiro deixava de sofrer dores de dentes. Passados anos o mancarrão já nem engordava mais, e todo ovado estava. O fiscal do regimento, sem uma palavra de - Deus te pague - mandou vendê-lo em leilão, como um cisco da estrebaria. Um carroceiro comprou-o, por patacão e meio, com as ferraduras. Passados anos o praça aquele teve baixa, por incapaz, com o bofe em petição de miséria; e saiu da fileira sem mais família e sem saber oficio. Saiu com cinco patacas, de resto do soldo, e sem o capote. Foi então ser carregador de esquina. O reiúno apanhava do carroceiro, como boi ladrão! Ocarregador levava dos fregueses descompostura, de criar bicho! Oreiúno deu em empacar. Ocarregador pegou a traguear. O carroceiro um dia, furioso, meteu o cabo do relho entre as orelhas do empacador e... matou-o. A policia uma noite prendeu o borrachão, que resistiu, entonado; apanhou estouros... e foi para o hospital, golfando sangue; e esticou o molambo. O engraçado é que há gente que se julga muito superior aos reiúnos; e sabe lá quanto reiúno inveja a sorte da gente... http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

"Artigos de Fé do Gaúcho" - Simões Lopes Neto

Muita gente anda no mundo sem saber pra quê: vivem porque vêem os outros viverem. Alguns aprendem à sua custa, quase sempre já tarde pra um proveito melhor. Eu sou desses. Pra não suceder assim a vancê, eu vou ensinar-lhe o que os doutores nunca hão de ensinar-lhe por mais que queimem as pestanas deletreando nos seus livrões. Vancê note na sua livreta: 1. Não cries guaxo: mas cria perto do teu olhar o potrilho pro teu andar. 2. Doma tu mesmo o teu bagual: não enfrenes na lua nova, que fica babão; não arrendes na miguante, que te sai lerdo. 3. Não guasqueies sem precisão nem grites sem ocasião: e sempre que puderes passa-lhe a mão. 4. Se és maturrango e chasque de namorado, mancas o teu cavalo, mas chegas; se fores chasque de vida ou morte, matas o teu cavalo e talvez não chegues. 5. A maior pressa é a que se faz devagar. 6. Se tens viajada larga não faças pular o teu cavalo; sai ao tranco até o primeiro suor secar; depois ao trote até o segundo; dá-lhe um alce sem terceiro e terás cavalo para o dia inteiro. 7. Se queres engordar o teu cavalo tira-lhe um pêlo da testa todas as vezes da ração. 8. Fala ao teu cavalo como se fosse a gente. 9. Não te fies em tobiano, nem bragado, nem melado; pra água, tordilho; pra muito, tapado; mas pra tudo, tostado. 10. Se topares um andante com os anelos às costas, pergunta-lhe - onde ficou o baio?... 11. Mulher, arma e cavalo do andar, nada de emprestar. 12. Mulher, de bom gênio; faca, de bom corte; cavalo de boa boca; onça, de bom peso. 13. Mulher sardenta e cavalo passarinheiro... alerta, companheiro!... 14. Se correres eguada xucra, grita; mas com os homens, apresilha a língua. 15. Quando dois brincam de mão, o diabo cospe vermelho... 16. Cavalo de olho de porco, cachorro calado e homem de fala fina... sempre de relancina... 17. Não te apotres, que domadores não faltam... 18. Na guerra não há esse que nunca ouviu as esporas cantarem de grilo... 19. Teima, mas não apostes; recebe, e depois assenta; assenta, e depois paga... 20. Quando 'stiveres pra embrabecer, conta três vezes os botões da tua roupa... 21. Quando falares com homem, olha-lhe para os olhos, quando falares com mulher, olha-lhe para a boca... e saberás como te haver... Que foi? Ah! quebrou-se a ponta do lápis? http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm Amanhã vancê escreve o resto: olhe que dá para encher um par de tarcas!...

Conto "Juca Guerra" - Simões Lopes Neto

- Vancê leu ontem no jornal aquele caso do sujeito que atirou-se à água da beira da praia para salvar um fulano que estava-se afogando... quando no aperto chegou um boteiro que levantou os dois... não foi assim?... E o tal ainda ganhou uma medalha do governo, pela grande áfrica!... 'Stá direito, não digo que não, que afinal ele ao menos sempre se lembrou de acudir a uma criatura de Deus; mas, lá quanto à nombrada, hum!... nem por isso! Olhe, mais, então, merecia o Juquinha Guerra. Eu conto, conto; vá assuntando. O Juca Guerra foi muito meu conhecido, desde guri. Já morreu, coitado, e morreu numa tristura... Veja vancê!... Um gaúcho daqueles... destorcido, bonzão!... Aquilo, era pra ficar na coxilha, picado de espada, rachado de lançaços, mas não pra morrer como foi, aperreado em cima da cama, o corpo besuntado de unturas e a garganta entupida de melados e pozinhos dos doutores!... Pobre de mim!... 'stou vendo que hei de morrer do mesmo jeito, como um pisa-flores da cidade, como bicho de galinheiro!. Moreno, alto, delgado; olho preto; nariz, de homem mandador; mãos e pés de moça; tinha força como quatro; bailarino, alegre, campeiraço; e o coração devia ser-lhe mui grande, devia encher-me o peito todo, de bom que era. Dessa feita houve rodeio na estância do Pavão; a estância era na costa de dois rios; e tem muitos albardões com mato, que eram a querência da gadaria xucra. Mas, pra chegar lá, havia que atravessar um santafezal cerrado, tiririca, atoleiros, juncais; um banhado brabo; lá dentro é que a gadaria alçada vivia misturada com os galheiros e os capinchos e os ratões. A gritos, a tiro e a cachorro tinha-se conseguido tocar como umas pra mais de três mil reses. Nem lhe falo nas cousas divertidas do serviço, como rodadas, algum matungo riscado de aspa de brasino, as compadradas da peonada e outras que sempre alegram um campeiro. E mal que cerrou o rodeio a gente mudou de cavalos, churrasqueou em pé mesmo e começou-se logo a apartar a tourada. E que torunas! Cada bicho pesado, criado na pura grama vermelha, ligeiros como gatos, e malevas, de acompanharem o laço, quase cabresteando!... Pois, foi um destes, que um moço chamado Tandão Lopes laçou... e laçou mal, de meia espalda: o touro bufou, e depois do tido já se lhe veio em cima... O moço estava mui bem montado; o pingo era de patas, porém apenas rocim, mui cosquilhoso; os arreios já vinham mal e com o tirão a cincha correu toda pras virilhas... Virge' Mãe!... O bagual agachou-se a velhaquear, e, pra pior ainda, em volta, enredando-se no laço, frouxo; o moço - ginetaço! - fechou as chilenas e meneou o rebenque, de chapéu do lado, numa pabulagem temerária, de guasca que só a Deus, respeita! Foi nesse apuro, que o touro carregou, e veio, de língua de fora, berrando surdo... e entreparado, baixou a cabeça, retesando o cogote largo e ia a levantar a guampada, quando, meio maneado no laço e ladeado por um sofrenaço de pulso, o bagual planchou-se... e o moço Tandão ficou também aí caído, preso pela perna, exposto, entregue... O touro recuou um pouco, escarvou, meio dançando, retesou os lagartos, numa fúria de força e fez a menção... A campeirada olhava, parada, vendo a desgraça vir... Mas nisto, justo, justo quando o touro, balanceando no ar, pareceu dar o pulo da carga, o Juca Guerra esteve-lhe em cima! Em cima! Foi como o trovão e logo o raio..., pois como um raio o gaúcho carregou e atirou a montaria contra o touro! Oigalê! Pechada macota! O tostado arrebentou as duas paletas na encontrada e caiu, sacudindo a cola, os olhos chispeando, de beiço enrugado e subido, de dor... Caiu, mas o touro, também. E tanto que atirou o seu pingaço, de pechada feita - e certo de o escangalhar - contra o touro, escorregou pela garupa, e enquanto os dois brutos se batiam e enovelavam, o Juca já aliviava o companheiro, que apenas livre, pulou para o cupinudo, ainda meio azonzado do trompaço, manoteou-lhe nas aspas e torceu-lhe a cabeça, que cravou no chão, num pronto! O bicho pataleava, puxando a respiração forte, que ondulava, no arredondado da barriga. Aqueles, sim, eram dois torenas que se valiam! Só então é que os vedores acudiram... mas foi para agüentarem uma tirana de sotretas! comedores de carne! maulas! vasilhas! capões!... e outros rebencaços de língua, desses que a gente esparrama quando está de marca quente... E no meio daquele bolo de campeiros, sobre as macegas pisadas, do lado do touro arquejando e do cavalo gemente, os dois homens se abraçaram e beijaram-se, chamando-se irmãos; e assim juntos chegaram-se para o cavalo tostado, quebrado dos encontros... fizeram-lhe umas festas de puro mimo e tristeza... e enquanto o Juca, com a sua própria mão sangrava o seu confiança, o moço Tandão abraçava a cabeça inteligente do flete... Correu o sangue, em borbotão; e quando, esvaido, o tostado afrouxou a força e a respiração e o garbo, e foi descaindo e ia a tombar, de vez, os lado, ampararam-lhe a cabeça... como se fosse uma criança dormilona, deitaram-na brandamente sobre os capins, - pro caso - sobre o pé malmequer branco, ramalhudo, que florejava ali, como num propósito. Coitado do flete! Mas como deixá-lo viver, assim, arrebentado? Para vê-lo morrer de dores, inchado, com fome e com sede... e antes disso serem-lhe os olhos vazados pelos urubus... e os buracos deles, ainda vivos, virarem toca das varejas? ! ... Não! Um gaúcho de alma não abandona assim o seu cavalo: antes mata-o, como amigo que não emporcalha o seu amigo! Vancê assuntou bem no conto? Ora, agora, vamos ao fim; o que merecia, de prêmio, o Juca Guerra? Qual o mais valente? o tal fulano, da beira da praia, ou este da beira. .. da morte certa? http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

Conto "Pena do Velho" - Simões Lopes Neto

- Conheci, sim, sr., o Binga Cruz, desde assinzinho... Guri levado da casqueira!... E teve um fim que nunca se soube... Pobrezinho... Andaria nos doze anos. Filho único. O pai dele, o velho, recebeu de regalo um bagual picaço sãozito das quatro patas, sem uma basteira; e de rédea, um pensamento. E era mesmo para o andar dele. Pois, amigo, se lhe conto!... Um dia, dezembro, sol de rachar, com trovoada armada, andara o guri ninhando numas restingas que havia sobre o fundo da roça, por detrás das casas. O chapéu estava já abarrotado de ovos de tico-tico, de alma-de-gato, de corruíras, canarinhos, sabiás...; era um entrevero bonito de cores e feitios diferentes. De calcita arregaçada, mui espinhado nas canelas e nos braços, o rosto vermelho e a cabeça ardendo, o diabinho ainda gateava um ninho de tesouras, quando, do outro lado da cerca, ouviu o assobio das avestruzes, pastando. Ouviu, e fura daqui, fura dali, varou a cerca para dar fé, bem à sua vontade. Entre a roça e um braço de banhado, que havia, formava-se uma rinconada mui boa para volteada: e foi nisso que o guri pensou. As avestruzes seriam umas oito e uma tropilha de filhotes, já emplumaditos. Não se conteve, o miúdo: pulou para o lado de fora, perto da bandada, e já correu sobre ela, de braços abertos, aos pulos, aos gritos: os bichos se arrolharam, assustados, mas logo o macho do bando ponteou para o rincão e tudo acompanhou. Era o que o guri esperava mesmo; ele queria, de por força, pegar uma, viva; mas só laçando... Foi quando lhe coriscou na idéia bancar-se no bagual picaço, do velho... Se estava tão delgado e lindo.., aquilo seria só amagar o corpo, chupar no beiço e rebolear o laço... Nem era tento! Num - vá! - era avestruz a cabresto! E correndo para o galpão, enfrenou o pingo, atirou-lhe um pelego no lombo, passou a mão no seu lacito e se foi a arriba! Espiou para os lados e mui de manso, a passo, saiu, sobre a cacimba, a encobrir-se numa reboleira de chorões, que fazia uma sombra fresca, onde as galinhas se rebolcavam, arrepiando as penas, assoleadas. Mas tudo isto levou seu tempo, de maneira que quando ele chegou ao rincão já as avestruzes haviam-se atirado no banhado e bandeado; apenas, por descuidada ou mais esfomeada, apenas uma se deixou ficar e agora não atinava com a passagem, e quando o Binga, gineteando, deu em cima dela, então é que o bicho ficou mesmo atarantado, e começou a gambetear zonzo, na enrascada. O guri se esqueceu do mundo! Tocava o picaço em cima do nhandu e atirava o laço... o bicho negaceava, e o laçador errava o tiro... E vá outro, e outro... mas errando sempre, só de apurado! Mas nisto o nhandu deu com a boca do rincão, viu o campo largo, e fazendo umas gambetas fortes, esparramando as asas, por fim aprumou o corpo e cravou a unha, num trotão galopeado, de comer quadras!... Mas o rapazinho estava encanzinado: levantou o picaço no freio e bateu de trás! Amigo! Que disparada! Por tacuruzais e buracama de tuco-tuco, por cima das panelas de caranguejo, por lançantes de coxilhas e moles das canhadas, salvando sangas e arrancando no barral das lagoas, tudo era várzea lisa para aquela alminha de gaúcho! Despistada pela perseguição, a avestruz corria à toa. Corria. Depois foi mermando; e foi afrouxando, até que se enredou numas macegas e caiu numa cova de touro. E conforme caiu, já o guri estava-lhe em cima, atracado com ela, passando-lhe o laço, maneando-a, vencedor, afinal! E respirou, aliviado; olhou o campo, silencioso, viu a casa lá longe, branqueando no verde do arvoredo. Como diabo ia ele levar a caça, aquela?... E quando estava botando as suas contas, o nhandu deu em patear, a se revirar todo e mal apanhou livre uma perna, priscou e se foi a la cria, deixando o caçador no ora-veja!... Aí o Binga fez um jeito de choro de raiva, e mui desconsolado montou de novamente. E voltou para casa, a passo, porque o picaço vinha meio estaqueado, de quartos duros. Com mil cuidados, aproveitando ainda a hora da sesta tornou a meter o flete no galpão e mui concho da sua vida foi para dentro, pedir à mãe - uma santa senhora, aquela dona! - pedir uma tigela de coalhada, pra refrescar. Na manhã seguinte o picaço apareceu esticado na estrebaria: derreteu a graxa dos rins; morreu arreganhado. O velho ficou buzina!... Quem foi, quem não foi...; afinal o próprio Binga, meio de orelha murcha mas decidido, relatou a criançada, tintim por tintim. Aí o velho andou mal... ali no mais, à vista da peonada, quis sovar o filho... e quando o guri viu o rabo-de-tatu no ar... quebrou o corpo, disparou e de vereda encarapitou-se num matungo que estava de piquete, encilhado, e abriu campo fora, sem rumo certo, ao deus-dará... Debalde o velho gritou-lhe - Pára aí, menino! Pára aí, menino! Qual! No peito do gauchinho não cabia a vergonha daquele guascaço do rabo-de-tatu, que caía-lhe em cima, se ele não foge... A sia-dona não viu nada deste passo; andava lá pra dentro, nos seus arranjos. Passou o tempo. Nunca mais houve notícias do menino. Campeou-se pelo vizindário, saíram chasques a vários rumos e... nada! O velho foi descuidando das lavouras; já não ia ao rodeio nem montava a cavalo; nas marcações ficava na porteira da mangueira, calado; pitava muito e passava os dias passeando na quinta, na rua das laranjeiras, de chapéu nos olhos e de mãos atrás das costas. A peonada já nem podia arranhar nas violas, porque o velho se enquizilava e mandava logo um piazito dizer lá fora que não queria bochinchadas em casa. Outras vezes dava-lhe para arranjar alguma trança prendia a lonca e começava a tirar os tentos... e de repente parava, suspirava... e torcia a mão, cortando ou fazendo entradas no couro, e afinal picava tudo e não fazia nada, nem um botão, nem um passador qualquer, de cacaracá... Ou ficava horas e horas, com os olhos perdidos naqueles descampados... olhando, olhando sempre, mas sem ver nada... nem as pontas de gado nem os mesmos andantes, que às vezes chegavam, pedindo pousada... A velhita, essa, então, dava lástima a gente se fixar nela... Não se riu, nunca mais, aquela senhora-dona. Chorar eu não vi: mas devia de chorar muito, porque quando vinha pra mesa servir os hospes, trazia sempre os olhos vermelhos e algo inchados. Ajuntou num canto da sala todas as cousas do Binga; os aperos, o laço: umas tamanquinhas já gastas; um carretão de brinquedos, enfiadas de ovos, uma chuspa cheia de pelotas de barro, argolas e ossinhos de mocotós; enfim não sei quantas mais bobages de criança.., mas que tocavam no coração quando a gente pensava que o doninho andava por esse mundo, de gaudério e teatino... como cachorro chimarrão, comendo de esmola algum soquete ordinário e tinindo de frio, sem ao menos um bichará esburacado... E sempre buenaça; mal chegava um andante, mandava logo um piá levar-lhe um mate, e ainda, à noite, água para os pés; e de manhã, quando a gente ia agradecer a pousada, lá vinha um naco de queijo ou meia vara de lingüiça, para fiambre, e outro amargo, pra o estribo... Quem sabia do caso até nem falava nele... era tão penaroso o sofrer daqueles velhos, que não diziam nada, que a gente entendia tudo... E não havia hospe que tivesse comido daquela mesa ou dormido naquele teto, que não desejasse ser ele que pudesse um dia topar o guri desguaritado e trazê-lo, para o colo que esperava sempre e que rezava sempre ao Nosso Senhor Jesus-Cristo, que, sendo Deus, morreu perto da sua mãe... A velhita finou-se primeiro, e de pura pena foi por certo. O vizindário em peso acudiu ao velório; o enterro se fez na vila. Pois desde a estância até o cemitério - umas quantas léguas - o caixão veio sempre à mão. Mas não pesava nada. Também - pobrezinha! - que pecados podia ela ter?... E quando foi a hora de o corpo cair na cova, que cada um atirou um punhado de terra, e que as crianças quase todas suas afilhadas - e as mulheres desataram num pranto de choro e até o coveiro se entreparou atristado, aí vi mais de um gaúcho colmilhudo manoteando nas lágrimas que dos olhos lhes caíam, grandes e claras, como as gotas d'água que caem do cartucho dos caetés... Meses depois o velho seguiu o mesmo caminho de nós todos; mas antes de morrer, engambelado por um padre gringo que apareceu aqui pelos pagos, lá fez uns papéis... e papéis foram que tudo o que era dele passou para missas e outros engrólios que ninguém sabia o que eram. Nem um tambeiro saiu para um afilhado!... Os parentes meteram demanda... foi um arranca-rabo que durou anos... E enquanto isso... vancê sabe o que é casa sem dono!... O Binga... quem sabe lá. o que foi feito dele, por esse mundo de Deus, tão grande!... Cuê-pucha!... Eu desejava que ele aparecesse, só por causa do padre gringo!... Que sumanta o guri lhe não havia de encostar!... E... por Deus e um patacão!... Eu dava as guascas e ainda ajudava a atar!... Ora se não!... http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

Conto "O Duelo dos Farrapos" Simões Lopes Neto

Já um ror de vezes tenho dito - e provo - que fui ordenança do meu general Bento Gonçalves. Este caso que vou contar pegou o começo no fim de 42, no Alegrete e foi acabar num 27 de fevereiro, daí dois anos, nas pontas do Sarandi, pras bandas e já pertinho de Santana. Foi assim. Tenho que contar pelo miúdo, pra se entender bem. Em agosto de 42, o general, que era o presidente da República Rio-Grandense - vancê desculpe... estou velho, mas inté hoje, quando falo na República dos Farrapos, tiro o meu chapéu!... - o general fez um papel, que chamavam-lhe - decreto - mandando ordens pr'uma eleição grande, para deputados; estes tais é que iam combinar as leis novas e cuidar de outras cousas que andavam meio à matroca, por causa da guerra. Em setembro houve a eleição; em outubro já se sabia quem eram os macotas votados, que eram quase todos os torenas que andavam na coxilha. O jornal do governo deu uma relação deles e dos votos que tiveram, que eu sabia, mas já esqueci. Por sinal que esse jornal chamava-se - Americano - e tinha na frente um versinho que saía sempre escrito e publicado e que era assim, se bem me lembro: "Pela Pátria viver, morrer por ela; Guerra fazer ao despotismo insano; A virtude seguir, calcar o vício; Eis o dever de um livre Americano". Em novembro, os deputados, que eram trinta e seis, mas que só se apresentaram vinte e dois, juntaram-se em assembléia; em dezembro, logo no dia um, foi então a cerimônia principal. O general foi em pessoa, como presidente, com a ministrada, os comandantes de corpos e outros topetudos, e aí fez uma - Fala - muito sisuda e compassada, que todos escuitaram quietos, só sacudindo a cabeça, como quem dizia que era mesmo como o general estava lendo no escrito. Uê!... e que pensa vancê?... Estava tudo na estica, sim senhor: fardas novas, bainhas de espada, alumiando; redingotes verdes ou azuis com botões amarelos, padres com as suas batinas saidinhas; um estadão! E famílias, muita moçada fachuda, povaréu, e até uma música. Eu e o outro ordenança, os dois, mui anchos, de gandola cobrada. Por esse entrementes, no Estado Oriental, andava gangolina grossa entre Oribe e Rivera, que eram os dois que queriam o penacho de manda-tudo. Volta e meia as partidas deles se pechavam e sempre havia entrevero. Ah! se vancê visse a indiada daquele tempo... cada gadelhudo... Ah! bom!... Mas, como quera, onde se encontrasse, a nossa gente entropilhava-se bem com a deles. E mesmo era ordem dos sup'riores. Quando íamos mal da vida, já pelas caronas, nos bandeávamos para o outro lado da linha; lá se churrasqueava, fazia-se uma volteada de potrada e voltávamos à carga, folheiritos no mais! O barão Caxias, que era o maioral dos caramurus, mordia-se com estas gauchadas. Mas tanto Oribe como Rivera nos codilhavam quando podiam, porquanto faziam também suas fosquinhas aos legais... apertavam o laço pra nós, mas afrouxavam a ilhapa pra eles... Vancê entende?... Pau de dois bicos!... - Mas, vá vancê escuitando. Rabo-de-saia é sempre precipício pros homens... Não vá vancê cuidar que no caso andou mulher botando fungu no coração de ninguém, não, senhor; a cousa foi muito outra, de alrifage... Naquele novembro de 42, quando os deputados foram-se ajuntando, de um a um, vindos de todos os rumos da província da República e havia na vila do Alegrete movimento de comitivas e piquetes, um dia, já à boquinha da noite, chegou uma carreta de campanha, mui bem toldada, com boiada gorda, e escoltada por um acompanhamento grande, de gente bem montada e armada. Chegou o combói e parou em meio da praça; e logo o que vinha de vaqueano cortou-se e foi apresentar o passe e outros papéis; e foi dizendo que a pessoa que vinha na caneta era uma senhora-dona viúva, que trazia ofício pra o governo e que era sobre uns gados que haviam sido arrebanhados e cavalhadas, e prejuízos e tal, e mais uma conversa por este teor e com mais voltas que um laço grande enrodilhado... Foi isso o que correu logo no redepente da curiosidade. Papéis foram que a tal dona trazia, que logo o general mandou chamar os deputados e os ministros e depois se trancaram todos numa sala grande; e depois despachou um capitão para ir buscar a figurona. E ela veio; e mal que chegou o general veio à porta, fez um rapapé rasgado e foi com ela pra tal sala onde estavam os outros. Se era linda a beldade!... Sim, senhor, dum gaúcho de gosto alçar na garupa e depois jurar que era Deus na terra!. E destorcida, e bem-falante; e olhava pra gente, como o sol olha pra água: atravessando! Dentro da sala, fechada, ia um vozerio dos homens; depois serenava; parece que eles estavam mussitando; e a voz da dona repenicava, hablando un castellano de mi flor! Lá pelas tantas levantaram o ajuntamento; o mesmo capitão foi levar a dona. E de manhã, nem carreta, nem boiada nem comitiva apareceram mais. Depois é que vim ao conhecimento que aquela figurona tinha vindo de emissária. Rivera era mais valente; Oribe era mais sorro: mas, os dois, matreiraços!... Agora, qual dos dois, pra disfarçar dos caramurus o chasque, mandou, em vez dum homem, aquela vivaracha, qual dos dois foi, não pude sondar. Era assunto encapotado... Depois desse dia começou a haver um zunzum mui manhoso contra o general. Não sei se era inveja, ou intrigas ou queixas ou ganas que alguns lhe tinham. As cousas foram-se parando embrulhadas na tal assembléia e uma feita, não sei por que chicos pleitos o general e o coronel Onofre Pires tiveram um desaguisado; o general deu as costas, num pouco caso e o coronel saiu, num rompante, batendo forte os saltos dos botins. Em 43 houve outra arrancada braba, foi quando mataram um Paulino Fontoura, que era um pesado. Houve outro bate-barbas entre o general e o coronel Onofre, que era mui esquentado e cosquilhoso. Mas logo os chefes todos se desparramaram, porque o barão Caxias andava na estrada, levantando polvadeira. E brigou-se! Em S. Gabriel, na Vacaria, em Ponche Verde, no Rincão dos Touros. O governo tinha saído do Alegrete e estava outra vez em Piratinim; aí por perto peleou-se, e no Arroio Grande, em Jaguarão, nas Missões, sobre o Quaraim, em Canguçu, em Pai Passo. Que ano que bebeu sangue, esse! E quando o exército se amontoou todo, pra lá do Ibicuí e depois foi estendendo marcha, houve um conelho grande de oficiais; e aí se falou outra vez na emissária, a fulana, aquela da carreta, no Alegrete. Aí, então, os dois galões-largos se contrapontearam outra vez. A gente como eu é bicho bruto e os graúdos não dão confiança de explicar as cousas, por isso é que eu não sei muitas delas: tenência não me faltava; mas como é que eu ia saber as de adentro dos segredos?... Já sobre o Garupá - vancê não conhece? são os campos mais bonitos do mundo! - aí os homens se cartearam. Então já era o ano 44. O coronel escreveu barbaridades; o general respondeu com aquele jeito dele, sisudo. E quando foi no dia 27 de fevereiro o general me chamou e mandou que eu fosse levando pela rédea, para a restinga, os dois cavalos que estavam atados debaixo dum espinilho; era um picaço grande e um cobrado. Fui andando; lá longe ia descendo um vulto, atrás de mim vinha outro. E devagarinho, como quem vai mui descansado da sua vida, os dois. Ah! esqueci de dizer a vancê que atravessado debaixo da sobrecincha de cada flete, vinha uma espada. Reparando, vi que as duas eram iguais, de copo fechado e folha grande, das espadas de roca, que só mesmo pulso de homem podia florear. E quando parei e os dois vultos se chegaram, conheci que eram o meu general e o coronel Onofre. E desarmados... Mas como chegaram, cada um despiu a farda, que botou em cima dos pelegos e desembainhou a espada que vinha. O cobrado era do coronel; o picaço, do general. Então o general deu ordem: - Espera aí, com os cavalos! E o coronel também: - Bombeia; se chegar alguém, assobia! E rodearam a restinga, para o outro lado. Então é que entendi a marosca: eles iam tirar uma tora, dessas que não se fira duas vezes entre os mesmos ferros... Maneei os mancarrões e com um olho no padre, outro na missa, por entre as ramas da restinga, fui espiar a peleia. Estavam já, frente a frente, de corpo quadrado. O sol dava a meio, para os dois. O general Bento Gonçalves era sacudido no jogo da espada preta; meneava o ferro, que chispava na luz, como uma fita de espelho; o coronel Onofre parava os botes e respondia no tempo, mas com tanta força que a espada assobiava no coriscar. Nisto o general pulou pra trás, fincou a espada no chão e pegou a tirar o tacão da bota, que se despregara. O coronel encruzou os braços, e a espada dele ficou dependurada da mão, como dum prego. Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual... aqueles não eram gente disso, não? E cruzaram, de novo. Em cima da minha cabeça um sabiá pegou a cantar... e era tão desconchavado aquele canto que chora no coração da gente, com aqueles talhos que cortavam o ar, que eu, que já tinha lanhado muito cristão caramuru, eu mesmo, fiquei, sem saber como, com os olhos nos peleadores, os ouvidos no sabiá, mas o pensamento andejando... nos pagos, no meu padrinho, no Jesu-Cristo do oratório da minha mãe... Os ferros iam tinindo, E nisto, o coronel deu um -ah! - furioso, caiu-lhe da mão a espada... e a sangueira coloreou pelo braço abaixo, desarmado, entregue!... Pra um que quisesse aproveitar... Mas qual! aqueles não eram gente disso, não! O general tornou a cravar a espada na terra e veio ao ferido com bom jeito. Pegou o braço, viu o ferimento; e com um lenço grande que levantou do chão, do lado do chapéu, atilhou o talho para estancar o sangue. O outro, calado, nem gemia. Depois o general tornou a pegar da espada, fez uma inclinação de cabeça ao coronel e caminhou pra cá... Foi o quanto eu me atirei pra trás e me acoc'rei perto dos cavalos. Vestiu a farda, embainhou a espada e montou. Então me disse: - Agora vem gente, que eu vou mandar. Não te movas daí, antes. E deu de rédea, a galope, para o acampamento. E no silêncio que ficou, só ficou balançando no ar o canto do sabiá, na restinga: do outro lado, o sangue do coronel, pingando nos capins; deste lado, eu, sabendo, mas não podendo me intrometer... - Agora veja vancê se não foi mesmo o fungu daquela tal dona - emissária dum dos dois sorros castelhanos - que veio transtornar tanta amizade dos farrapos?... Ela só não pôde foi mudar o preceito de honra deles: brigavam, de morte, mas como guascas de lei: leais, sempre! Pois não viu, naquelas duas vezes?... Pra um que quisesse aproveitar... E creia vancê, que lhe rezei este rosário sem falha duma conta, apesar de já sentir a memória mais esburacada que poncho de calavera... Pois faz tanto ano!... http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

Conto "Jogo do Osso" - Simões Lopes Neto

- Pois olhe: eu já vi jogar-se uma mulher num tira de taba. Foi uma parada que custou vida... mas foi jogada! Um pouco pra fora da Vila, na volta da estrada, metida na sombra dumas figueiras velhas ficava a vendola do Arranhão; era um bochinche mui arrebentado, e o dono era um sujeito alarifaço, cá pra mim, desertor, meio espanhol meio gringo, mas mui jeitoso para qualquer arreglo que cheirasse à plata... Mui destravado da língua e ao mesmo tempo rezador, sempre se santiguando e olhando por baixo, como porco, tudo pra ele era negócio: comprava roubos, trocava cousas, emprestava pra jogo, com usura, e sempre se atrapalhava para menos, no troco dos pagamentos. Às vezes armava umas carreiritas, que se corriam numa cancha dumas três quadras que ele mesmo tinha arranjado a um lado do potreiro; então conchavava algum gringo tocador de realejo e estava preparado o divertimento. O que ele queria era gente, peonada, andantes, vagabundos, carreteiros, para poder vender canha e comida e doces; e de noite facilitava umas mesas de primeira, de truco ou de sete-em-porta para tirar o cafife. Doutras ocasiões ajeitava umas dançarolas que alvorotavam o chinaredo da vizinhança. Por este pano de amostra vancê vê o que seria aquele gavião. Duma vez que ele tinha trançado umas carreiras, com duas ou três pencas de patacão, e se havia ajuntado algum povo, tudo gauchada leviana, choveu. A chuvarada estragou a cancha, molhou as carpetas, atrapalhou tudo. E a gente foi ganhando na venda, apinhoscou-se por debaixo das figueiras e no galpão. Quando passou o aguaceiro e oriou o terreiro, deram alguns aficionados para jogar o osso. Vancê sabe como é que se joga o osso? Ansim: Escolhe-se um chão parelho, nem duro, que faz saltar, nem mole, que acama, nem areento, que enterra o osso. É sobre o firme macio, que convém. A cancha com uma braça de largura, chega, e três de comprimento; no meio bota-se uma raia de piola, amarrada em duas estaquinhas ou mesmo um risco no chão, serve; de cada cabeça da cancha é que o jogador atira, sobre a raia do centro: este atira daqui pra lá, o outro atira de lá pra cá. O osso é a taba, que é o osso do garrão da rês vacum. O jogo é só de culo ou suerte. Culo é quando a taba cai com o lado arredondado pra baixo: quem atira assim perde logo a parada. Suerte é quando o lado chato fica embaixo: ganha logo e sempre. Quer dizer: quem atira culo perde, se é suerte ganha e logo arrasta a parada. Ao lado da raia do meio fica o coimeiro que é o sujeito depositário da parada e que a entrega logo ao ganhador. O coimeiro também é que tira o barato - para o pulpeiro. Quase sempre é algum aldragante velho e sem-vergonha, dizedor de graças. E um jogo brabo, pois não é? Pois há gente que se amarra o dia inteiro nessa cachaça, e parada a parada envida tudo: os bolivianos, os arreios, o cavalo, o poncho, as esporas. O facão nem a pistola, isso, sim, nenhum aficionado joga; os fala-verdade é que têm de garantir a retirada do perdedor sem debocheira dos ganhadores... e, cuidado... muito cuidado com o gaúcho que saiu da cancha do osso de marca quente!... Pois dessa feita se acolheraram a jogar a taba o Osoro e o Chico Ruivo. O Osoro era um moreno mui milongueiro, compositor de parelheiros e meio aruá; andava sempre metido pelos ranchos contando histórias às mulheres e tomando mate de parceria com elas. O Chico era domador e morava de agregado num rincão da estância das Palmas; e vivia com uma piguancha bem jeitosa, chamada Lalica. Nesse dia Unha vindo com ela ao festo do Arranhão. Enquanto os dois jogavam, a morocha andava lá por dentro, com as outras, saracoteando. Havia violas; havia tocadores; a farra ia indo quente. E os dois, jogando. O Chico perdia uma em cima da outra. - Culo! Outra vez?... Má raios!... - Suerte, chê! Ganhei! repetia o Osoro. - Jogo-te o tostado, aperado, valeu? Topo! E culo!... Isto é mau olhado dalgum roncolho mirone!... E relanceou os olhos pelos vedores, esperando que algum comprasse a camorra; ninguém se picou. - Jogo o teu ruano contra as duas tambeiras da Lalica! - E pouco, Chico!... Ainda se fosse a dona!... - Osoro, não brinca!... Pois olha; jogo! - O ruano? - O mano contra a Lalica! Assim como assim, esta china já está me enfarando!... - Pois topo! Os mirones se entreolharam, boquejando, alguns; eles bem viam que o gaúcho estava sem liga, que já tinha perdido tudo, o dinheiro, o cavalo, as botas, um rebenque com argolão de prata; e agora, o outro, o Osoro, para completar o carcheio, ainda tinha topado a última parada, que era a china... A cousa ia ser tirana; correu logo voz; em roda dos dois amontoou-se a gente. O Osoro atirou, e deu suerte... O Ruivo atirou, e deu suerte... - Ora, não deu gosto! disse um. - Outra mão! disse o outro. E o Ruivo atirou: culo! O Osoro atirou: suerte! - Ganhei, aparceiro! - Pois toma conta, ermâo! - Tu é que tens de fazer a entrega... - Não tem veremos... Trato é trato!... Já ia querendo anoitecer. Oque se passou entre aquelas três criaturas, não sei; se juntaram num canto do balcão da venda e falaram. Por certo que o Chico Ruivo disse à china que a jogara numa parada de taba; o Osoro só disse uma vez: -Eu, se perdesse o ruano, o Chico já ia daqui montado nele... A Lalica deu uma risadinha amarela; olhou o Osoro, olhou o Chico Ruivo, cuspiu de nojo e disse pra este, na cara: - Sempre és muito baixo!..., guampudo, por gosto!... - Olha, guincha, que te grudo as chilenas!... - Ixe! Este, agora, é que me encilha, retalhado!... Nisto um violeiro pegou a rufar uma dança chorada; umas parelhas pegaram a se menear no compasso da música e logo o Osoro, para cortar aquele aperto, travou do pulso da morocha, passou-lhe o braço na cinta e quase levantando-a no ar entrou na roda dos dançadores; o Ruivo ficou quieto, mas de goela seca e nos olhos com uma luz diferente. Na primeira volta, quando o par passou por ele, a china ia dizendo mui derretida: - Quando quiseres, meu negro... Na segunda volta, como num despique, ela tornou a boquejar pro Osoro: -Eu vou na tua garupa... E na outra, a china vinha calada, mas com a cabeça deitada no peito do par, olhando terneira pra ele, com uma luz de riso, os beiços encolhidos, como armando uma promessa de boquinha; e o Osoro se esqueceu do mundo... e colou na boca da tentação um beijo gordo, demorado, cheio de desaforo... O Chico Ruivo teve um estremeção e deu um urro entupido, arrancou do facão e atirou o braço pra diante, numa cegueira de raiva, que só enxerga bem o que quer matar... E vai, como pegou o Osoro pela esquerda, do lado, meio por detrás, por debaixo da paleta, o facão saiu no rumo certo e foi bandear a Lalica meio de lado, sobre a esquerda da frente. Vancê compr'ende? Do mesmo talho varou os dois corações, espetou-os no mesmo feno, matou-os da mesma morte, fazendo os dois sangues, num de cada peito, correrem juntos num só derrame... que foi lastrando pelo chão duro, de cupim socado, lastrando... até os dois corpos baterem na parede, sempre abraçados, talvez mais abraçados, e depois tombarem por cima do balcão, onde estava encostado o tocador, que parou um rasgado bonito e ficou olhando fixe para aquela parelha de dançarmos morrentes e farristas ainda!... Levantou-se uma berraçada. - Matou! Foi o Chico Ruivo!... Amarra! Cerca!... Mas o Ruivo parece que voltou a si; coriscou o facão aos dois lados e atropelou a porta, ganhou o terreiro e se foi ao palanque onde estava o ruano do Osoro: montou e gritou pra os que ficavam: - Siga o baile!... E deu de rédea, no escuro da noite. O Arranhão acudiu ao berzabum; aquele safado, curtido na ciganagem, só soube dizer: - Pois é... jogaram o osso, armaram a sua paranda... mas nenhum pagou nada ao coimeiro!... Que trastes!... http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

Conto "Contrabandista" - Simões Lopes Neto

- Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibirocaí. Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiúnos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!... Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo. Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu. E sempre que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe. Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser muito de mãos abertas. Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas, reunia a gurizada da casa, fazia - pi! pi! pi! pi! - como pra galinhas e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro. Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num - caim! caim! caim! - de desespero. Outras vezes dava-me para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!... Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitán... Era um pagodista! Aqui há poucos anos - coitado! - pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito tempo. A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha - pro caso, uma moça -, que era o - santo-antoninho-onde-te-porei! - daquela gente toda. E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila. E noiva, casadeira, já era. E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela. O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo. O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval da filha. Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu... Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro. Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões. Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços, abanava o poncho e vinha a meia rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados. Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do mesmo jeito. Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla, do Haedo... O mais, era várzea! Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e agüentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!... Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!. Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros... Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam. Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim... Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralho de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas! Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos reinóis... Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra 1uxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!... E logo com quem!... Com a gauchada!... Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios... e ninguém pagava dízimos dessas cousas. Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão da pólvora; doutras uma partida de milicianos saia de atravessado e tomava conta de tudo, a couce d'arma: isto foi ensinando a escaramuçar com os golas-de-couro. Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Baía, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase. Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se entendiam... Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas. Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados. A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo... Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!... Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se. Rompeu a guerra do Paraguai. O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil réis!... Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!... Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas, minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca! Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui... Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas... Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje. O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora da morte. Eu vi. Como disse, na madrugada vésp'ra do casamento o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha. Passou o dia; passou a noite. No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada. Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá. Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na sala. Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados. A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer. Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo. Surdiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios. Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera. As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam. Entardeceu. Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra e ela - tão boazinha! - veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente. A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar dos olhos pestanudos... E rindo e chorando estava, sem saber porque... sem saber porquê, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro: - Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!... Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber porquê... pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva... Era já fusco-fusco. Pegaram a acender as luzes. E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo. E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos. Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado... Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada... Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enjeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse: - A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de bala.... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo! A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-o. Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores de laranjeira... Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!... Então rompeu o choro na casa toda. http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Conto "O Anjo da Vitória" - Simões Lopes Neto

- Foi depois da batalha de Ituzaingo, no passo do Rosário, pra lá de São Gabriel, do outro lado do banhado de Inhatium. Vancê não sabe o que é inhatium? Ë mosquito: bem posto nome! Banhado de Inhatium. .. Virge' Nossa Senhora!... mosquito, aí, fumaceia, no ar! Eu era gurizote: teria, o muito, uns dez anos; e andava na companha do meu padrinho, que era capitão, para carregar os peçuelos e os avios do chimarrão. As cousas da peleia não sei, porque era menino e não guardava as conversas dos grandes; o que eu queria era haraganear; mas, se bem me lembro, o meu padrinho dizia que nós estávamos mal acampados, e estransilhados, pensando culatrear o inimigo, mas que este é que nos estava nos garrões; não havia bombeiros nem ordem, que o exército vinha num berzabum, e que o general que mandava tudo, que era um tal Barbacena, não passava de um presilha, que por andar um dia a cavalo já tinha que tomar banhos de salmoura e esfregar as assaduras com sebo... O meu padrinho era um gaúcho mui sorro e acostumado na guerra, desde o tempo das Missões, e que mesmo dormindo estava com meio ouvido, escutando, e meio olho, vendo...; mesmo ressonando não desgrudava pelo menos dois dedos dos copos da serpentina... Num escurecer, enquanto pelo acampamento os soldados carneavam e outros tocavam viola e cantavam, ou dormiam ou chalravam, o que sei é que nesse escurecer o meu padrinho mandou pegar os nossos cavalos; e encilhamos até a cincha; e depois nos deitamos nos pelegos, com os pingos pela rédea, maneados: ele, armado, mateando; eu, enroscadito no meu bichará, e o ordenança, que era um chiru ombrudo, chamado Hilarião, pitando. Eu, como criança, peguei logo a cochilar. Amigo! Vancê creia: o coração às vezes, trepa, dentro da gente, o mesmo que jaguatirica por uma árvore acima!... Lá pelas tantas, ouviu-se cornetas e clarins e rufos de caixa...; mas o som dos toques andava ainda galopeando dentro do silêncio da noite quando desabou em cima de nós a castelhanada, a gritos, e já nos foi fumegando bala e bala!... Numa arrancada dessas é que o coração trepa, dentro da gente, como gato... - Desmaneia e monta! gritou o meu padrinho; ele que falava, eu e o chiru que já estávamos enforquilhados nas ganas. E por entre as barracas e ramadas; por entre os fogões meio apagados, onde ainda havia fincados espetos com restos de churrascos; por entre as carretas e as pontas de bois mansos e lotes de reiúnos; no fusco-fusco da madrugada, com uma cerraçãozita o quanto-quanto; por entre toques e ordens e chamados, e a choradeira do chinaredo e o vozerio do comércio, já no cheiro da pólvora e em cima dos primeiros feridos, formou-se o entrevero dos atacantes e dos dormilões. E cantou o ferro... e choveu bala!... O meu padrinho levantou na rédea o azulego: e de espada em punho, o chiru, com uma lança de meia-lua - e eu entre os dois, enroscadito no meu bichará - nos botamos ao grosso do redemoinho, para abrir caminho para o quartel-general do dito Barbacena. Como lá chegamos, não sei. A espada do meu padrinho estava torcida como um cipó, e vermelha, e o azulego tinha uns quantos lanhos na anca; o Hilarião tinha um corte de cima a baixo da japona, e eu levei um lançaço, que por sorte pegou no malote do poncho. Mas, varamos. No quartel do Barbacena ninguém se entendia. A oficialada espumava, de raiva, e um cutuba, baixote, já velho, botava e tirava o boné e metia as unhas na calva, furioso, de ralar sangue!... Esse, era um tal general Abreu... um tal general José de Abreu, valente como as armas, guapo como um leão... que a gauchada daquele tempo - e que era torenada macota! - bautizou e chamava de - Anjo da Vitória! Esse, o cavalo dele não dava de rédea para trás, não! Esse, quando havia fome, apertava o cinto, com os outros e ria-se! Esse, dormia como quero-quero, farejava como cervo e rastreava como índio...; esse, quando carregava, era como um ventarrão, abrindo claros num matagal. Com esse.. . castelhano se desguaritava por essas coxilhas o mesmo que bandada de nhandu, corrida a tiro de bolas!... Era o Anjo da Vitória, esse! Daí a pouco apareceu um outro oficial, mocetão bonito, que era major. Este chamava-se Bento Gonçalves, que depois foi meu general, nos Farrapos. Os dois se conversaram, apalavraram os outros e tudo montou e tocou pra rumos diferentes. No acampamento estrondeava a briga. Já tinha amanhecido. Eu andava colado ao meu padrinho, como carrapato em costela de novilho. Por onde ele andou, andei eu; passou, passei; carregava, eu carregava; fazia cara-volta, eu também. Naquelas correrias, o meu bicharazito, às vezes, enchia-se de vento, e voava, batia aberto, que nem uma bandeira-cinzenta... O major Bento Gonçalves formando a cavalaria, agüentava como um taura as cargas do inimigo, para ir entretendo, e dar tempo à nossa gente de quadrar-se, unida. Os castelhanos, mui ardilosos, logo que aquentou o sol tocaram fogo nos macegais onde estava o carretame; o vento ajudou, e enquanto eles carcheavam a seu gosto, uma fumaça braba tapou tudo, do nosso lado!... Então o general Abreu no alto do coxilhão formou os seus esquadrões: o meu padrinho comandava um deles. Formou, fez uma fala à gente e carregou, ele, na frente, montado num tordilho salino, ressolhador. Oh! velho temerário! Firme nos estribos, com o boné levantado sobre o cocuruto da cabeça, a espada apontando como um dedo, faiscando, o velhito ponteou aquela tormenta, que se despenhou pelo lançante abaixo e afundou-se e entranhou-se na massa cerrada do inimigo, como uma cunha de nhanduvai abrindo em dois um moirão grosso de guajuvira... E deixando uma estiva de estrompados, de mortos, de atarantados, de feridos e de morrentes - como quando rufa um rodeio xucro... vancê já viu? - varou para o outro lado, mandou fazer -alto, cara-volta! - e mal que reformou os esquadrões, os homens chalrando e rindo, a cavalhada, de venta aberta, bufando ao faro do sangue e trocando orelha, pelo alarido, o velho já se bancou outra vez na testa, gritou -Viva o Imperador! - e mandou - Carrega! E a tormenta da valentia rolou, outra vez, sobre o campo. Mas nesta hora maldita, a fumaça maldita nos rodeava e cegava; e mal íamos dando lance à carga - eu, folheirito, abanando no mais o meu bichará pra o Hilarião - rebentou na vanguarda e num flanco a fuzilaria, e vieram as baionetas... e uma colubrina, que nos tiroteavam donde não podia ser!... A nossa cavalaria se enrodilhou toda, fazendo uma enrascada de mil diabos... e enquanto o tiroteio nos estraçalhava, que os ginetes e os cavalos caíam, varados, e que, por fim, os próprios esquadrões já iam rusgando uns com os outros - aí, amigo, andei eu às pechadas!-enquanto isso... veio uma rajada forte de vento, que varreu a fumaça, limpou a vista de todos e mostrou que era a nossa infantaria que nos tinha feito aquela desgraça... Então, por cima dos mortos e dos feridos houve um silêncio grande, de raiva e de pena... como de quem pede perdão, calado... ou de quem chora de saudade, baixinho... Lá longe, os castelhanos, enganados, tocaram a retirada. O nosso quartel-general também tocou a retirada. Pegou a debandada; dispersava-se a gente por todos os lados, aos punhados, botando fora as pederneiras, as patronas; muitos sotretas fugiram de cambulhada com o chinerio... Metades de batalhões arrinconavam-se, outras encordoavam marcha. Os ajudantes galopavam conduzindo ordens... mas parecia que toda a força ia fugindo duma batalha perdida, que não era, porque tudo aquilo era da indisciplina, somentes. O Anjo da Vitória lá ficou, onde era a frente dos seus esquadrões, crivado de balas, morto, e ainda segurando a espada, agora quebrada. Campeei o meu padrinho: morto, também, caído ao lado do azulego, arrebentado nas paletas por um tiro de peça; ali junto, apertando ainda a lança, toda lascada, estrebuchava o Hilarião, sem dar acordo, aiando, só aiando... Deitado sobre o pescoço do cavalo, comecei a chorar. Peguei a chamar: - Padrinho! padrinho!... - Hilarião! Meu padrinho!... Apeei-me, vim me chegando e chamando - padrinho!... padrinho!... e tomei-lhe a bênção, na mão, já fria...; puxei na manga do chiru, que já nem bulia... Sem querer fiquei vendo as forças que iam-se movendo e se distanciando.., e num tirão, quando ia montar de novo, sem saber pra quê... foi que vi que estava sozinho, abandonado, gaudério e gaúcho, sem ninguém pra me cuidar!... Foi então, que, sem saber como, já de a cavalo, enquanto sem eu sentir as lágrimas caíam-me e rolavam sobre o bichará, os olhos se me plantaram sobre o tordilho salino... sobre o coto da espada... sobre um boné galoado... E o cabelo me cresceu e fiquei de choro parado...e ouvi, patentemente, ouvi bem ouvido, o velho macota, o Anjo da Vitória, morto como estava, gritar ainda e forte - Viva o Imperador! Carrega! O meu bicharazito se empantufou de vento, desdobrou-se, batendo como umas asas... o mancarrão bufou, recuando, assustado... e quando dei por mim, andava enancado num lote de fujões... Comi do ruim... Vê vancê que eu era guri e já corria mundo... http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

Conto "Melancia - Coco Verde" - Simões Lopes Neto

-Vancê pare um bocadinho; componha os seus arreios, que a cincha está muito pra virilha. E vá pitando um cigarro enquanto eu dou dois dedos de prosa àquele andante... que me parece que estou conhecendo... e conheço mesmo!... É o índio Reduzo, que foi posteiro dos Costas, na estância do Ibicui. -Vancê desculpe a demora: mas quando se encontra um conhecido do outro tempo - e então do tope deste! - a gente até sente uma frescura na alma!... Coitado, está meio acalcanhado... mas, bonzão, ainda! Pois aquele cuerudo que vancê está vendo, teve grito d'armas!... Vou contar-lhe uma alarifagem em que ele andou metido, e que só depois se soube, pelo miúdo, e isso mesmo porque a própria gente do caso é que contava. O Reduzo foi nascido e criado em casa dos Costas, ainda no tempo do velho, o Costa lunanco, um que foi alferes dos dragões do Rio Pardo. Este Costa lunanco era um pente-fino, que naquele tempo arranjou tirar para ele e para os filhos - miudagem, ainda - como quatro sesmarias de campo, sobre o lbicui, pegadas umas nas outras, e com umas divisas largas... como goela de gringo!... O chiru criou-se junto com os meninos, e desde ninhar e armar urupucas, até botar as vacas, irem aos araçás e pegar mulitas, tudo faziam juntos. Quando eram já taluditos o velho começou a encostá-los no serviço, também sempre de companheiros; e assim foram aprendendo a campeirear, domando, capando... até saberem apartar boi gordo e tocar uma tropa. Neste entrementes rebentou outra vez uma gangolina com os castelhanos. Um dos moços, que era um quebra largado, nomeado por Costinha, esse, foi dos primeiros a se apresentar ao comandante das armas, pra servir. E tais cantigas cantou ao velho Costa, que este deixou o Reduzo ir com ele, de companheiro e ordenança, porque o rapaz era cadete, com estrela, e tinha direito. O chiru ficou todo ganjento; imagine vancê que colhera, daqueles dois aruás!... Neste passo porém deu-se uma cousa em que o Costinha nem tinha pensado. E rabo-de-saia, já se vê... O cadete tinha uma paixão braba por uma moça lindaça - a sia Talapa -, filha dum tal Severo, também fazendeiro dali pertinho, obra de cinco léguas. O moço Costinha de vez em quando aparecia por lá, matava as saudades; fazia umas agachadas, e vinha-se embora trazendo nos olhos o encantamento dos olhos da namorada. O velho Severo parece que não queria o casamento dos dois, nem por nada; teimava e berrava que ela havia de casar-se com o sobrinho dele, primo dela, um que tinha uma casa de negócio na Vila. Esse tal era um ilhéu, mui comedor de verduras, e que para montar a cavalo havia de ser em petiço e isso mesmo o petiço havia de ser podre de manso... e até maceta... e nambi... e porongudo!... A moça chorava que se secava, quando caçoavam-na com o primo e o casório. Era mesmo uma pena, lhe digo... casar uma brasileira mimosa com um pé-de-chumbo, como aquele desgraçado daquele ilhéu... só porque ele tinha um boliche em ponto grande!... O caso é que o Costinha gostava da moça e a moça gostava dele: tem, é que não atavam nem desatavam... e o velho Severo puxava a pêra, torcendo as ventas... O ilhéu às vezes vinha à estância do tio, em carretinha...; veja vancê como ele era ordinário, que nem se avexava. de aparecer de carretinha, diante da moça!... E era só cama com lençóis de crivo, para o primo; fazia-se sopa de verdura para o meco; e até bacalhau aparecia, só pra ele!... Que isto das nossas comidas, um churrasco escorrendo sangue e gordura e salmoura...uma tripa grossa assada nas brasas... uma cabeça de vaquilhona... uma paleta de ovelha; e mogango e canjica e coalhada. .. e uns beijus e umas manapanças. .. e um trago de cana e um chimarrão por cima... e para rebater tudo, umas tragadas dum baio, de naco bem cochado e forte... tudo isso, que é do bom. e do melhor, para o ilhéu não valia nem um sabugo!... Tuuh! diabo!... Até me cuspo todo, quando me lembro daquele excomungado!... - Vancê está se rindo e fazendo pouco?... E porque vancê não é daquele tempo... quando rompeu a independência lá na Corte do Rio de Janeiro... e depois tivemos que ir pra coxilha fazer a guerra dos Farrapos, com seu general Bento Gonçalves, que foi meu comandante, sim senhor, graças a Deus.. . e mais os outros torenas!... Galego, naquele tempo, era gente, vancê creia! Estância, era dele; negócio, era dele; oficial, era só ele; era arrematante das sisas, ele; surgião, ele; padre-vigário, ele; e pra botar a milicada em cima dos continentistas... era ele!... E cada presilha!... Gente da terra não valia nada!... - Que é que vancê está dizendo?... O que nós somos hoje a eles devemos? Qual! É verdade que uns inventaram plantação de trigo... isso enfim, era bom...; sempre era uma fartura; noutras casas plantavam e fiavam linho... também não era mau, isso; noutras cardavam lã... Algum mais vivaracho botava tenda e vendia mechiflarias ou prendas de ouro... Nalguns trocava-se uns quantos couros por um pão de açúcar, e pipote de cana por qualquer meia dúzia de vacas. E sempre corria alguma dobla, de salário, e algum cruzado pela peonada de ajuste. Mas, como quera... eram mui entonados, os reinóis. Onde é mesmo que eu estava? Ah!... O Costinha e sia Talapa tinham juramento entre eles, de se casarem, ainda que ela saísse de casa na garupa do namorado, se o carrança do velho Severo não consentisse. Com o ilhéu é que nunca! Pois foi por estas alturas que os castelhanos bandearam a fronteira e o Costinha assanhou-se. Foi uma despedida de arrebentar a alma! Ele deixou-lhe de lembrança uma memória e ela deu-lhe um negalho de cabelo. E combinaram que pra qualquer recado ou carta ou aviso, ela teria o nome de Melancia e ele de Coco verde. Só eles, ninguém mais saberia; que era para despistar algum xereta. E como a despedida foi de noite, e ela veio acompanhá-lo até a porta. .. até a ramada, onde ele montou a cavalo... e como ventava forte, e a vela que um crioulo trazia apagou-se... parece que houve a roubada de uma boquinha... porque ele tocou a trotezito, calado, e ela, ficou como entecada, no mesmo lugar, calada... Quem não soubesse jurava que se despediam enfunados, quando a verdade é que se despediam chorando nos olhos mas tocando música no coração... por causa daquela bicota arreglada no escuro, mas que valeu como um clarão!... Ninguém viu... só o Reduzo. Nessa madrugada o cadete marchou. O velho Severo deixou passar um mês ou mais; quando teve notícia de que as forças andavam bem longe, e trançadas com o inimigo, e que ninguém de lá podia sair assim a dois tirões. . . sem falar nos balázios e nos lançaços - que isso era a boche! -, quando inteirou-se de tudo, mandou à Vila o capataz para vir acompanhando o sobrinho, a quem escreveu uma carta grande, fechada com mais obreias do que tragos de vinho tem um copo de missa, de padre gordo!... Ora!... daí a uns dias o ilhéu batia na estância, de carretinha e com um carregamento de cousas. E já começaram a aferventar o casamento. Imagine vancê o cerco em que se viu a pobre da sia Talapa! Eram os pais dela; a parentalha; vizinhos velhos, cancheiros da estância... tudo a dizer, a gabar, a achar até bonito o ilhéu... E já foram alinhavando papéis, e preparos de vestidos e doçarias, perus na engorda, leitões no chiqueiro, terneiras pros churrascos. Uma negra que havia lhe dado de mamar era a única criatura que chorava com a moça... mas chorava escondido, a pobre, por medo do laço... De noite, fechadas no quarto as duas abraçavam-se, rezavam e só diziam, no consolo duma esperança: - Mãe santíssima... valei-me!... - Nossa Senhora!... manda nhô Costinha aparecer!.. Afinal chegou o dia marcado. Veio o vigário com o sancristão e gentama de toda parte; não digo bem: o velho Costa lunanco nem a família não foram convidados. Mas assunte vancê como se passaram as cousas. Pela Vila tinha justamente passado a meia rédea um chasque para as forças em que servia o cadete. O chasque era rapaz novo, alegre, mui relacionado por aqueles meios; enquanto mudava de cavalo tinha ido tomar um refresco no negócio do ilhéu, e aí, pela gente da casa soube a nova do casamento, do dia certo, dos preparos da jantarola, enfim, de tudo, tudo, pelo miúdo.E mal que apertou os pelegos, montou, - e se foi - que o rei manda marchar, não manda chover. Quando bateu no acampamento e entregou os ofícios que levava, procurou a rapaziada conhecida e portanto o Costinha, para dar a novidade do casório da sia Talapa com o primo. Como touro de banhado laçado a meia espalda, assim ficou o moço. Amassou o sombreiro sobre a orelha, afivelou a espada e gritou: - Me vou, e é já! Reduzo! - Pronto! - Encilha os nossos cavalos! Já! Vamos embora!... Deserto!... Hei de lonquear aquele galego ordinário!... Deserto... Deserto... acabou-se! - Encilho? reperguntou o chiru. - Sim, coos diabos! berrou o desesperado. Neste momento o clarim deu toque de alarma... e como pra acoquinar o pobre um cabo veio a toda pressa chamar o Costinha, de ordem do comandante... Veja vancê que entaladela! Pelos altos das coxilhas avistava-se uma partida do inimigo. O comandante então deu ao Costinha uma prova de confiança, pois encarregou-o de uma carga sobre um flanco dos atacantes... E agora?!... Filho de tigre é pintado!... Diante do dever o moço engoliu a tristeza, e mesmo não quis se desmoralizar desertando justamente naquela hora de peleia. Mas coriscou-lhe um pensamento... e logo montou, formou a gente, tomou a testa do piquete e disse ao Reduzo. - Procura-me, que te preciso!... Desembainhou a espada, deu um viva a Sua Majestade! - e despencou-se, firme nos estribos, com o chapéu caído pra trás, sobre um ombro, preso pelo barbicacho. E a gauchada, reboleando as lanças, carregou, a gritos, fazendo tremer a terra e o ar. O Reduzo, de pura pabulagem, atou a cola do pingo e logo riscou, escaramuçando, na culatra dos companheiros. E foi mesmo no meio da carga, entre gritos, juras, palavrões, tiros, pontaços de espadas e coriscos de lanças, pechadas de cavalos, foi nesse berzabum do entrevero que o Costinha industriou o chiru; - Tu, sai já; vai direito lá em casa, mas não chegues. A Talapa, depois d'amanhã, de noite, se casa, à força, com o ilhéu... Tu, mata cavalos, boleia e monta os que precisares... arrebenta-te, mas chega antes do casamento... Não digas a ninguém, nem lá em casa, que me viste, nem que sabes de mim... Mas vai ao velho Severo, mete-te lá, custe o que custar e acha jeito de dizer, que ela ouça, que o coco verde manda novas à melancia... Ela entende. Compreendes?... Eu sou o Coco Verde, ela é a Melancia... Só nós sabemos isso... e tu, agora. Vai. Tu vais adiante; logo mais eu sigo, se não morrer neste revira. Vai, Reduzo!... Coco verde... Melancia... Não esqueças... Abaixa-te!... abai!... E enquanto o chiru se deitava no pescoço do cavalo e uma lança de três pontas escorregava-lhe por cima do espinhaço, o Costinha, com um tiro de pistola derrubava um gadelhudo lanceador... e continuava o sermão: - Olha, não brigues... pra não perder tempo... Olha... é depois d'amanhã... Se dormires, se comeres no caminho, não chegas a tempo!... Sempre a meia rédea, Reduzo! Eu não posso desertar agora... Senão, eu ia... Vou logo... amanhã. Tu, agora!... já sabes: Coco verde manda novas a Melancia... Diz como quem não quer.. . Só ela entende... O que é preciso é que ela ouça... - Acuda aquele, patrãozinho, que eu tempero estes!... Isso disse o chiru e esporeando o flete atirou-o contra dois desalmados que iam degolar um ferido... emborcou-os a patadas e logo gritou ao moço: - Já sei tudo! Deus ajude! Lá le espero!... E riscou campo fora, rumo da querência, ainda batendo na boca, num pouco caso dos castelhanos! E bateu na marca!... Boleou e mudou cavalos alheios, pediu outros no caminho, tomou um, à força, largou os arreios porque rebentou-se-lhe o travessão e não tinha tempo para remendá-lo, mas com duas braças de sol, na tarde do casamento, veio dar no velho Severo, de em pêlo - pelego, e freio -, as boleadeiras na cintura, o facão atravessado no cinto, e sem mais nada; moído, entransilhado, estrompado, varado de fome, com sono, com frio, mas ainda de olho vivo e língua pronta, contando uma rodela mui deslavada.., que vinha de casa, andava campeando umas tambeiras... e uma vaca mocha, que não apareciam no gado manso, havia dois dias!... Ovelho Severo pasmou... -Uê! chiru!... Pois tu não tinhas ido com o seu Costinha? -Eu?... Não sr., patrão! Fui só levar uns cavalos até o meio do caminho e dei volta. Diz que lá bala é como chuva... e lança, como roseta!... Não vê!... E dele mesmo, nem notícia nenhuma, té agora... Vancê dá licença de campear os alimais? -Deixa isso pra amanhã. Hoje estamos de festa. Fica aí, pra tomares um copo de vinho e comer uns doces à saúde do noivado... Vai pra o galpão... -Sim, senhor patrão: Deus lhe pague. Eu hei de fazer uma saúde, sim senhor... -Pois sim, pois sim; vai! O sorro entrou no galinheiro... Quando apeou-se, o chiru estava de pernas duras; agüentou-se como um tigre, pra não dormir. Daí a pouco pegaram a jantarola. O casamento ia ser de noite, depois da comida; depois, baile. Havia uns quantos cantadores, e violas; dava pra dançar a tirana, o anu e a mancada na casa-grande e no terreiro. OReduzo foi se fazendo de sancho rengo... e foi se encostando pra janela da sala de jantar..., e por ali foi comendo e bebendo, como soldado estradeiro, que não se aperta... A noiva estava como um defunto: branca, esverdeada, de olhos fundos e chorando sem alívio; a negra, ama, atrás dela, muito retinta, só mexia o branco dos olhos, parecia uma alma penada, do purgatório... Oilhéu é que estava solto!... Parecia que tinha bicho-carpinteiro, o desgraçado!... Só estava era meio vendido com o jeito da noiva, mas fingia não se dar por achado, o velhaco... Um convidado levantou-se e fez uma saúde; depois outro, e outro e outro; cada um fazia o seu verso. Havia risadas, o noivo agradecia.. . a noiva chorava. Os convidados aplaudiam; moças também botaram versos; os rapazes respondiam; foi se virando tudo numa alegria geral. Nisto o capataz da estância chegou à porta e pediu licença pra oferecer um verso à saúde do noivado, e botou uma décima bem bonita. Outros, posteiros e agregados, também. Nesse entrementes o velho Severo perguntou: -Que é do Reduzo? Oh! Chiru?... -Pronto, patrão, respondeu o caboclo. -Então?... e a saúde prometida? -Já vai, sim senhor! E amontoando-se para a mesa, bem junto dos que estavam sentados, frente a frente dos noivos, olhando pra sia Talapa o chiru levantou o copo e disse: Eu venho de lá bem longe, Da banda do Pau Fincado: Melancia, coco verde Te manda muito recado! E enquanto todos se riram e batiam palmas, enquanto o ilhéu se arreganhava numa gargalhada gostosa, e o velho Severo, mui jocoso, gritava - gostei, chiru! outra vez! - e enquanto se fazia uma paradita no barulho, a noiva se punha em pé como uma mola, e com uma mão grudada no braço da ama, já não chorava, tinha um cobreado no rosto e os olhos luziam como duas estrelas pretas!... Lindaça ficou, como uma Nossa Senhora! O Reduzo aproveitou o soflagrante e soltou outro verso: Na polvadeira da estrada O teu amor vem da guerra:... Melancia desbotada!... Coco verde está na terra!... Amigo! Nem lhe sei contar o resto!... A noiva atirou-se pra trás e pegou aos gritos. A gente da mesa levantou-se toda; o mulherio correu, pra acudir... O padre-vigário benzia pra os lados... O ilhéu olhou para o Reduzo, viu-lhe o facão atravessado... e tomado dum mau espírito, gritou furioso e escarlate: - Foi esse negro, com tanta arma, que estarreceu a menina! Um que estava perto do chiru gritou-lhe na cara: - Que desaforo é este?... O Reduzo - cuê-pucha! índio dente-seco! - largou-lhe os cinco mandamentos, de em cheio! Porém caíram-lhe em cima; foi uma desgraceira! O ilhéu, do outro lado da mesa sampou-lhe com uma botija de bebida, que acertou bem entre o queixo e o ouvido do chiru... Fechou o salseiro, nem se sabia bem com quem. Nessa inferneira o Reduzo mergulhou por baixo da mesa e quando surdiu, foi para arriar o braço, dar uma volta na traira e reiunar o ilhéu... E antes que o picassem - que o picavam! - pulou por uma janela e se foi ao galpão onde montou no primeiro matungo que encontrou e abriu os panos!... O resto é simples. Passados dois dias chegava o Costinha, como bagual com couro na cola; e apresentou-se ao velho Severo, pedindo a mão da moça, O velho teve de desembuchar, contar o compromisso em que estava e que até havia se demorado o casamento por causa dum estropício mui bruto, que tinha havido,.. O Costinha não quis saber de nada... armou banzé...; veio a moça à fala... Vancê imagina: rebentou o laço pra mais de quatro... Pra não afrontar o velho Severo, o Reduzo teve de andar escondido. Tempos depois do Costinha já casado, então o chiru tomou conta dum posto; depois passou a capataz. Era o confiança da casa. Veja vancê que artes de namorados: Melancia... Coco-verde!... http://www.paginadogaucho.com.br/bibli/contosg.htm

Animação do conto "Entre Santos" de Machado de Assis